Alfa e Ômega: observações e comparações entre “A árvore da vida” e “Melancolia”


Nossa avaliação

De onde viemos? Para onde vamos? Perguntas tão clichês quanto atemporais que nunca deixarão de nos assombrar. É quase inevitável que, em algum momento da vida, nos questionemos por que estamos aqui, qual o motivo, a lógica. É tudo um grande carrossel aleatório da natureza? Ou Deus realmente existe?

Mais uma prova disso é o lançamento, num espaço de poucos dias, de “Melancolia” e “A árvore da vida” – dois filmes que, abordando lados opostos do espectro, lidam com essa aflição existencial de formas bem específicas. A dobradinha compartilha bem mais que a proximidade de datas, a presença aclamada no último Festival de Cannes e dois diretores de peso – Lars Von Trier e Terrence Malick. Os dois longas estão preocupados com algo que extrapola as quatro linhas da tela do cinema.

O texto aí embaixo é uma breve digressão sobre alguns desses paralelos, que não pretende ser definitivo nem de longe esgotar o assunto. São reflexões em aberto, que eu convido você a completar, ou questionar – desde que concordemos todos que nunca chegaremos à resposta absoluta. [ATENÇÃO: o texto contém SPOILERS para quem não viu os filmes].

 

O início x o fim

“A árvore da vida” é um filme sobre criação, uma busca obsessiva pelas origens do que nós nos tornamos, enquanto “Melancolia” é uma obra sobre o que somos frente à inevitabilidade do fim. O primeiro é um ensaio sobre o “criar” em seu sentido mais amplo. O segundo quer desvendar se, diante da destruição, existe algum sentido em tudo que fizemos.

No princípio, era isso aí.

Terrence Malick volta até os coacervados na tentativa de encontrar o momento em que deixamos de simplesmente existir para, conscientemente, SER. Quando foi que o processo deixou de ser aleatório e a existência na Terra passou a ser responsável pelo seu próprio avanço? Foi tudo puro acaso, ciência natural, ou havia um Deus presente? E se tudo é mesmo resultado de um grande acidente, como o amor, sentimentos, relações e regras surgiram em meio ao caos?

Há uma cena belíssima no longa em que um dinossauro encontra outro ferido às margens de um rio. E Malick demonstra seu traço mais característico, ao permanecer um bom tempo com sua câmera na troca de olhares entre os dois. Por um momento, o espectador jura testemunhar compaixão ali e é como se naquele instante surgisse algo inédito: uma relação, uma conexão que não existia antes e vai mudar a história para sempre. Mais tarde, isso se desenvolverá num senso de família e comunidade, muito importante para a narrativa do diretor.

This is NOT Jurassic Park.

Von Trier, por outro lado, coloca seus personagens frente ao abismo, como forma de revelar o que somos quando nossas seguranças inventadas se mostram inúteis. O que é realmente o ser humano quando ciência, tecnologia, rituais, religião e ostentação não valem mais nada? Os protagonistas de Malick parecem incomodados com a incerteza e a imperfeição de um princípio, um Deus guiador. Já os de Von Trier, massacrados pelo poder irrefutável da natureza, são obrigados a olhar para dentro de si mesmos e encarar o que resta de seus espíritos depois de tudo em que eles se apoiavam cair por terra. Justine e Claire são o retrato de nossos âmagos e nossos medos mais primais, sem filtros ou maquiagem, diante do fim.

 

Criador x Criatura

Esse é, na minha opinião, o conflito central de “A árvore da vida”. Jack, o garotinho, ressente o pai ao descobrir que ele não corresponde à perfeição que exige dos filhos. A fala “pede que não coloquemos os cotovelos na mesa, mas ele coloca” é tão simples quanto genial. Já o pai, Mr. O’Brien, tenta ao máximo aplicar e seguir regras, afirmar sua moral e seus princípios, controlar a família, estabelecer e impor a ordem. Ele vai à igreja e segue os passos do homem fiel, rezando antes das refeições. Mas Deus não olha pra ele quando a fábrica fecha e o personagem é demitido. Se é que Deus está lá.

Tem alguém aí?

Terrence Malick usa esses pequenos desastres domésticos para refletir sobre essa frustração paradoxal que é a imperfeição de Deus, ou a imperfeição da criação. O diretor confronta seu próprio poder como criador, capaz de fazer arte que supere a vida (a fotografia de Emmanuel Lubezki), que talvez seja mais bela que ela (a trilha de Alexandre Desplat), mas sem jamais conseguir compreendê-la totalmente. Sem nunca redimir ou corrigir essa imperfeição e, dessa forma, reproduzindo-a – talvez assim, estando em paz com ela.

 

Natureza X Deus

Já “Melancolia” ignora a presença de Deus como um Pai Misericordioso ou um refúgio na tormenta. (Repare que nem a cerimônia de casamento, possivelmente religiosa, o diretor mostra). A Natureza é a força máxima e o homem, sua cria, não tem poder diante dela – o cavalo não atravessa a ponte e não há nada que possa ser feito. Tecnologia e ciência são inúteis. Rituais, como o matrimônio, são patéticos. Nenhuma in(con)venção humana sai ilesa do fatalismo descrente de Von Trier.

Kirsten Dunst vai para o matinho.

A oposição homem/ciência X natureza/orgânico fica bem clara no contraste entre o ambiente opressor da mansão e o aspecto “convidativo” da floresta. Mesmo a iluminação do casamento é um tanto gótica e mórbida. Infeliz, Justine precisa sair da casa e se deitar nua no rio, restabelecer contato com esse “eu natural”. O homem deixou de ter sentido ao se afastar de sua “mãe-terra” e ela parece achar necessário, então, uma espécie de “reset”.

 

Família X Indivíduo

Com algumas raras intromissões, ambos os filmes são centrados em um núcleo familiar específico e fechado. E interessante notar que, por mais que os personagens de Kiefer Sutherland (em “Melancolia”) e Jessica Chastain (em “Árvore da vida”) tenham destaque, o filme que trata da criação é centrado na relação de dois homens, e aquele que retrata a destruição no laço entre duas mulheres.

Jack e Justine são os filhos que, por vias e motivos diferentes, descobrem que nada do que lhes foi dito faz sentido e passam a dirigir um olhar analítico e cínico para o universo ao seu redor. Já Claire e Mr. O’Brien são verdadeiros totens da instituição e da família, tentando manter os valores que fundaram suas  “Casas”, mesmo quando eles podem não mais se sustentar.

O olhar, no canto à esquerda.

Ao saírem para o mundo, Jack e Justine cometem erros, experimentam, desafiam, questionam. Tornam-se indivíduos que aprendem a “funcionar” independentes das regras que lhes foram impostas. Ela transa com um estranho no dia do casamento (que não se consuma) e ataca a hipocrisia do chefe, pedindo demissão. Ele atira no dedo do irmão e menciona um desentendimento com o pai, já adulto, ao telefone.

Mas em momentos cruciais das tramas, é ao núcleo familiar que eles recorrem. ATENÇÃO: SPOILERS A SEGUIR

[spoiler]No portal que o Jack adulto atravessa, numa espécie de futuro arcaico, é a família que ele busca reencontrar. E minutos antes do choque do Melancolia com a Terra, Justine dá as mãos para Claire e o sobrinho, parecendo pela primeira vez se conectar realmente com alguém.
[/spoiler]

Brincando de casinha.

Os dois finais ressoam essa espécie de nostalgia por uma essência primal, algo anterior à instituição, às regras e às convenções. Um princípio de onde a ideia de família (ou comunidade) germinou, pura e sem adaptações. A simples relação e a necessidade recíproca do contato e da presença, sem regras estabelecidas. A ideia de indivíduos que se encontram e se amam sem nada lhes ser imposto, simplesmente porque querem e precisam.

Aquele momento de pureza e origem buscado por Terrence Malick nos dinossauros, ressoando de certa forma na imagem que Lars Von Trier escolhe para seu fim. Opostos que se atraem e se espelham e, pelo menos para os dois diretores, parecem indicar algum tipo de resposta.


Uma resposta para “Alfa e Ômega: observações e comparações entre “A árvore da vida” e “Melancolia””

  1. Prezado Daniel

    Meus parabéns pela ótima resenha e por enfrentar este desafio que foi o de colocar frente a frente estas duas obras extraordinárias. Como voce mesmo disse, o assunto está longe de ser esgotado – eu diria que chega a beirar o infinito – mas muitas questões fundamentais foram habilmente captadas.
    Minha preferência de cinéfilo foi Melancolia. Para ser franco faz tempo que um filme não me transmitia tamanha desolação!

    Abraços

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