Um grupo come animadamente à mesa. Poderiam ser caminhoneiros, mas são tripulantes de uma nave espacial. Um deles parece se engasgar e cai sobre os pratos. Em meio aos seus espasmos, algo explode de dentro do seu corpo. A criatura que “nasce” é repugnante e foge.
A cena descrita não é apenas uma das mais famosas do cinema, mas é também o ponto de virada de “Alien – O Oitavo Passageiro”. A partir daquele momento, o que era um filme de suspense se transforma em um terror ao estilo “casa mal assombrada”. A diferença é que a casa é uma nave isolada no espaço, e o monstro é um alienígena.
“Alien” começa com um silêncio angustiante para apresentar o cenário da história: a câmera de Ridley Scott faz questão de passear pelos vazios da espaçonave Nostromo, ressaltando os corredores apertados e já estabelecendo o clima claustrofóbico que dominará toda a produção. A Nostromo não é só uma nave, mas também um labirinto. E uma prisão.
Após conhecermos o cenário, somos apresentados às vítimas, ou melhor, aos personagens. Funcionários de uma espécie de cargueiro e direção à Terra, os cinco homens e as duas mulheres possuem personalidades distintas que não são bem desenvolvidas, mas isso nem é necessário. Basta uma definição superficial para compreendermos (e até anteciparmos) as reações de cada um, algo essencial para que compreendamos as dinâmicas daquelas relações em um momento de crise. E rapidamente a crise se estabelece ao descobrirem que a nave está fora de rota, em busca de contato com um planeta desconhecido. A paz inicial vai aos poucos sendo abalada, em uma tensão crescente que vai explodir cerca de uma hora depois, justamente com a criatura que sai do peito de Kane.
Um das características mais interessantes do filme é como os arcos de cada personagem são construídos e interrompidos para revelar que Ripley é a verdadeira protagonista da história. Ela aparece inicialmente de forma bem tímida, quase imperceptível. Os personagens principais parecem ser Dallas e Kane, e a mulher com mais destaque é Lambert, que é importante para com sua tensão mostrar ao público durante a primeira metade do filme que há algo de errado acontecendo. Aos poucos Ripley vai aparecendo mais, ganhando destaque nos enquadramentos até que, após a morte de Dallas, surge em primeiro plano, com os outros personagens desfocados ao fundo: pronto, está dada a protagonista.
Importante salientar que não se tratam de heróis, aventureiros em busca de emoção, mas de funcionários de uma companhia poderosa. A Weyland-Yutani se estabelece como um dos vilões do filme, representando a descrença nas instituições após o caso Watergate e também as grandes companhias petrolíferas que levaram à crise financeira dos anos 70: o lucro – ou a descoberta científica (no caso o petróleo, mesma cor do alien) – como prioridade absoluta, acima do bem estar dos trabalhadores. Há no filme uma sutil abordagem marxista das relações trabalhistas que vai aos poucos se deslizando em direção ao feminismo, elegendo uma mulher – que vinha de vez conquistando o mercado de trabalho na época – como a sobrevivente do “corte de funcionários” causado pelos vilões da história.
A caçada ao alienígena é interessante pelos humanos abandonarem as armas tecnológicas (mais uma referência à crise energética da época), optando pelo fogo para tentar destruir o monstro. E é impossível não apontar o simbolismo aí presente: o fogo não apenas fere, mas também ilumina a escuridão, criando um interessante paralelo com o nosso medo pelo desconhecido. O oitavo passageiro do título nacional se esconde nos lugares mais sombrios da Nostromo, uma espécie de porão da nave. Enquanto isso, o computador central, chamado de Mãe, é completamente iluminado em um design projetado para lembrar uma capela cheia de velas. É a iluminação (o racional do Iluminismo) versus a escuridão (a sombra do instinto animal, o monstro irracional que habita as profundezas humanas).
É interessante, então, como os personagens habitantes de um futuro tecnológico se transformam em uma espécie de homens pré-históricos, carregando suas “tochas” pela “caverna” escura, explorando o desconhecido e caçando o inimigo que, obviamente, irá se tornar o caçador. Em uma jornada em direção ao inferno, os tripulantes vão sendo eliminados um a um, enquanto o monstro tem suas características reveladas aos poucos (deixando a criação do terror para nossa imaginação), tornando-se, aos olhos do espectador, cada vez mais perigoso (afinal, o que pode ser mais assustador do que “sangrar” ácido?). Começa aí uma diversão sádica para todos nós, como se estivéssemos em um tipo de casa do terror dos parques de diversão, sentindo prazer pelo medo.
Scott faz como em “Tubarão” e acerta em esconder ao máximo sua criatura,que por fim se revela com um visual extremamente poderoso. Uma espécie de monstro que se esconde no escuro (como o “monstro do armário” que dominava o medo de muitas crianças à noite), “Alien – O Oitavo Passageiro” faz referência aos nossos medos mais infantis, como o quarto sem luz na hora de dormir: não é por acaso que as futuras vítimas da criatura estão acordando no início do filme dentro da Nostromo (que possui uma estrutura física uterina – e um computador chamado Mãe -, dando a luz a esses seres infantilizados) e que Ripley vai dormir após derrotar o monstro.
O responsável pelo desenho do alien, H. R. Giger, estudava Freud e o inconsciente dos sonhos para tentar recriar as imagens de seus pesadelos. Daí pode-se tentar compreender as inferências psicológicas do visual da criatura em sua relação com a sexualidade humana, uma vez que o filme abusa dos fluídos corporais, seja o ácido do monstro ou o “leite” que escorre de Ash. E se o facehugger que ataca (e podemos dizer, copula) Kane possui características próximas da genital feminina, o alien é estruturado de forma que remete ao órgão sexual masculino, do formato do crânio ao falo dentado que se ergue de sua boca quando ataca.
Para ressaltar a potência psicológica da violência sexual, a heroína aparece sem roupa ao final do filme, ainda mais fragilizada usando apenas uma calcinha com camiseta branca. E para aumentar mais a tensão, o espaço é diminuído, levando Ripley para uma nave de fuga. Neste processo, a contagem regressiva que pode levar à autodestruição da Nostromo possui um ritmo perfeito, muito bem elaborado e que faz com que nossos sentidos se agucem para tentar ver (ou escutar) o alien em algum dos cantos do cenário.
Mas se tudo isso funciona é graças ao realismo que Scott consegue apresentar, juntando elementos de cenografia funcionais com um equilíbrio entre claro e escuro cuidadoso para o desenvolvimento dramático da história. O elenco é competente, os detalhes ajudam a compor a trama (a influência da arte asteca nas paredes da nave e a fumaça que sai dos escuros corredores do “inferno” onde se esconde o monstro) e a mistura de suspense, terror e ficção científica atinge um equilíbrio perfeito.
Homenagem aos filmes B dos anos 50, “Alien – O Oitavo Passageiro” atualiza o medo do desconhecido ao misturar repugnância física com terror psicológico. A nave como uma ilha perdida no espaço, de onde não se pode escapar, é uma representação potente do pesadelo do qual não se consegue acordar. Com um visual forte que apela aos medos mais instintivos do ser humano, o filme conserva sua capacidade de aterrorizar de forma hipnótica, grudando nossos olhos na tela mesmo quando não queremos olhar. É a celebração de nossas mais íntimas repressões e, por isso mesmo, a visualização do terror humano. Obra-prima.
Uma resposta para “Na Prateleira: Alien – O Oitavo Passageiro (1979)”
[…] tempo todo: a primeira metade do filme é toda sobre ações, e a segunda trata das consequências. Ridley Scott consegue imprimir um ritmo tenso que valoriza todas as reações, parecendo ter mais interesse nas […]