Na Estrada


Nossa avaliação

[xrr rating=3.5/5]

Sal Paradise estava à procura de pessoas que, nas suas palavras, “queimam, queimam, queimam”. A busca do alter-ego de Jack Kerouac na adaptação do clássico beat “Pé Na Estrada” traz na câmera de Walter Salles elementos desta chama que queima sem parar e que, pela intensidade, pode ser destrutiva. O diretor vai mostrar seus personagens centrais sempre suados, vestindo cores quentes, em um constante estado febril: uma agitação nos olhares, no modo de falar e nas danças que emula as tremeluzentes chamas de uma vela.

“Na Estrada” é um filme de fagulhas, quando deveria ser um fogo constante que se intensifica cada vez mais. Kerouac escreveu seu livro em um rolo de papel, sem pontuação, para não ter nenhuma quebra da experiência de descoberta e transformação daqueles personagens. Não dar conta de seguir este ritmo talvez seja o principal problema da adaptação cinematográfica da obra. Salles optou pelo cinema clássico, tradicional, para narrar a história de amizade entre Sal e Dean Moriarty (que em alguns momentos evolui para um triângulo amoroso com Marylou) no final dos anos 40 e suas viagens que os colocaram em contato com as mais variadas pessoas. Assim, a produção adquire um tom quase episódico, e se por um lado é louvável o cuidado do diretor em tentar desenvolver ao máximo seus personagens principais, as pausas e o excesso de (estrelados) coadjuvantes acaba por criar passagens entediantes. Aquilo que deveria ir num crescente é freado várias vezes, prejudicando a imersão.

Trata-se de um olhar de fora, somos apenas observadores, nunca fazemos a viagem junto daquelas pessoas. O fato da história em si não possuir uma trama bem estruturada – afinal são viagens sem propósitos claros – também dificulta o engajamento na trama: não há alguém para torcer, um objetivo para se acompanhar. Neste sentido, o filme é fiel às suas raízes literárias, apesar disso surtir um efeito problemático na tela. A viagem não pragmática, o viajar pelo viajar, é uma busca de liberdade suprema, e a jornada de Sal e Dean representa um pré-“Sem Destino”. “Na Estrada” consegue mostrar de forma eficiente uma sociedade à beira do rock n’ roll (a trilha jazz e blues é um atrativo à parte) e da revolução sexual. Ali estão as sementes da contracultura que desembocará nos hippies e em toda a transformação comportamental dos anos 60.

Gestação de uma revolução.

E ninguém representa melhor esta revolução do que Dean. Com seu jeito egoísta e auto-destrutivo, ele é um selvagem indomável (repare como ele sempre está sem roupa quando encontra Sal, como um animal – apenas quando está “enjaulado” no casamento aparece vestindo um roupão), a chama que queima até causar sua própria extinção. Hedlund consegue passar toda a intensidade necessária, com um olhar imprevisível que se contrapõe ao jeito atento e programado do Sal de Sam Riley. Já Stewart acompanha as boas atuações, compondo uma Marylou que é ao mesmo tempo frágil e poderosa: uma pré-feminista ainda presa aos valores conservadores do papel da mulher na sociedade.

Bastante irregular, “Na Estrada” serve para provar a incapacidade de se adaptar satisfatoriamente o livro de Kerouac. Mas Salles consegue pelo menos captar o espírito da obra, com o risco, o sexo e a irresponsabilidade como forças de transformação identitária. Se as jornadas de auto-descoberta normalmente envolvem o amadurecimento, o filme nos traz a descoberta da juventude, a passagem de uma sociedade em que as pessoas assumiam grandes responsabilidades cada vez mais cedo em direção ao nosso mundo pós-anos 50, marcado por uma extensão cada vez maior da adolescência.

E que a identidade jovem que um dia todos nós já compartilhamos nasça do parto forçado da amizade entre Sal Paradise e Dean Moriarty é só uma das sutilezas que Walter Salles e Jack Kerouac prepararam. “Na Estrada” está longe de ser perfeito, mas diz muito sobre quem somos nós.


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