Twin Peaks ou “Este é o Passado ou o Futuro?”

Laura Palmer

Twin Peaks foi e é um fenômeno televisivo difícil de explicar. A série é uma ousada criação de David Lynch e Mark Frost, que apresenta alta complexidade narrativa e estética, além de ser uma importante obra para compreensão da história da ficção televisiva e de suas transformações nas últimas décadas.

Composta por três temporadas, que totalizam 48 episódios, a série trata da investigação do assassinato de Laura Palmer (Sheryl Lee) conduzida pelo agente especial do FBI, Dale Cooper (Kyle Maclachlan). O desenvolvimento da investigação revela que Laura e os peculiares habitantes da cidade de Twin Peaks escondem estranhos segredos sob a aparente normalidade.

A ambiguidade, a bizarrice, a perversão e o pesadelo parecem ter adentrado a televisão junto à descoberta do cadáver de Laura, no episódio piloto da série. Twin Peaks abriu as portas dos subterrâneos da América, onde o pacato e o familiar andam lado a lado com o insólito e o sombrio.

A série foi bem sucedida em sua primeira temporada, na avaliação do público e da crítica, tendo sido cancelada após a segunda, quando passou a sofrer interferências criativas dos produtores do canal exibidor. São 26 anos que separam as primeiras temporadas (1990/91) da terceira (2017). Se há algo que une esses dois momentos de Twin Peaks, tão distantes no tempo, é o grau de ousadia e de transgressão que não abandonaram a obra. Passado e futuro parecem se fundir na terceira temporada, apontando, mais uma vez, para uma possível nova revolução televisiva.

Parte I – Twin Peaks, um marco da TV dos anos 1990

Exibida originalmente pela rede ABC em 1990/91, a série despertou o interesse do público, da crítica e dos estudos acadêmicos, sendo considerada por muitos como uma das experiências mais impactantes da ficção televisiva. De fato, ela é precursora de uma certa linhagem da teledramaturgia que mistura o mistério ao surreal e ao fantástico, abrindo caminho para outros programas como Arquivo X (1993-2002), O Reino (1994), Lost (2004-2010) e Fringe (2008-2013).

A Twin Peaks dos anos 1990 foge aos padrões da dramaturgia televisiva praticados à época, pois mescla o formato episódico da série policial com a continuidade capitular (típica da telenovela). Além disso, a série promove o encontro de diversos gêneros, como o investigativo, a soap opera, o fantástico, o melodrama e a comédia, todos embalados por uma atmosfera surrealista.

Um dos aspectos mais marcantes de Twin Peaks é essa qualidade peculiar de seus personagens, ao mesmo tempo tão familiares e tão estranhos. Nesse sentido, a série realizou uma habilidosa transposição, para o mundo da ficção, do conhecido conceito de unheimlich (inquietante estranheza) desenvolvido por Freud. A conjunção entre o familiar e o estranho, que marca de maneira tão singular a atmosfera surrealista de Twin Peaks, é potencializada pelo tratamento sonoro dado à série que conta com trilha composta por Angelo Badalamenti, fiel colaborador de Lynch no cinema.

Outra característica notável de Twin Peaks é a fusão entre as diversas dimensões: realidade, sonhos, pesadelos, alucinações, visões. Todas elas se misturam e se integram de maneira indissociável. Essa mescla se realiza especialmente neste ambiente paralelo denominado red room – uma espécie de “sala de espera” entre o mundo dos vivos e dos espíritos. É nesse quarto cercado por cortinas vermelhas que ocorrem algumas das cenas mais célebres da série.

A série apresenta, de maneira precursora, estratégias de expansão narrativa, contando com um filme (Twin Peaks – Fire walk with me), três livros e um áudio livro que ampliam e complementam sua história. Todo o universo ficcional de Twin Peaks se tornou objeto de culto de uma legião de fãs, culto esse que perdura há mais de duas décadas e que volta a ganhar intensidade em 2017.

Após 26 anos, as primeiras temporadas de Twin Peaks não perderam o impacto que causam no público. Mesmo se comparada à ficção televisiva dos dias de hoje, a Twin Peaks dos anos 1990 ainda conserva seu efeito de estranhamento, que vem alimentando o fenômeno cult em torno da série. A terceira temporada, por sua vez, parece potencializar ainda mais esse efeito, que raríssimas vezes encontramos na televisão (ou mesmo no cinema).

Parte II – Twin Peaks, o retorno. “it’s happening again

O retorno de Twin Peaks, tão aguardado quanto temido por fãs e pela crítica, parece revolucionar, mais uma vez, a televisão. Compreender sua relevância para história da TV e do audiovisual provavelmente demandará tempo para que se possa digerir e refletir sobre seu significado e seus efeitos. É preciso destacar que, após 26 anos, muita coisa mudou na TV e na carreira dos criadores da série. De lá pra cá, a TV por assinatura viveu seus dias de glória e de crise, a videolocadora se extinguiu, a internet ganhou força, e plataformas de distribuição via streaming, como a Netflix, surgiram e se apossaram de boas fatias do mercado televisivo.

Mark Frost realizou várias séries de ficção e de não ficção e escreveu romances, como a trilogia “A profecia do Paladino” (2012-2015). David Lynch se afastou da TV e realizou seus filmes mais radicais, Estrada Perdida (1997) Cidade dos Sonhos. (2001) e Império dos sonhos (2006), com uma liberdade autoral cada vez maior. Além disso, ele se engajou na meditação transcendental e retomou sua carreira como pintor e músico, tendo executado projetos como o álbum The Big Dream (2013).

Ao contrário da primeira versão, a terceira temporada foi totalmente produzida antes de sua exibição, que ocorreu pelo canal por assinatura Showtime e pela plataforma Netflix (com um dia de atraso na disponibilização dos episódios). Segundo Lynch, a terceira temporada foi concebida como um longo filme partido em 18 episódios.

Embora apresente novos modos de produção, distribuição e exibição, a nova temporada se destaca pela radicalização estética e narrativa. Lynch não apenas escreveu todos os episódios em parceria com Frost, como também os dirigiu, atuou (como Gordon Cole) e assina o desenho de som de todos eles. Na Twin Peaks de 2017, a marca autoral de Lynch é ainda mais nítida.

Meanwhile… 25 anos depois

Muito se especulou sobre a volta de Twin Peaks. Afinal, a segunda temporada é finalizada com um grande gancho narrativo, supondo sua continuação (o verdadeiro Dale Cooper está preso em uma estranha dimensão paralela – Black Lodge, enquanto sua réplica malévola retorna à cidade de Twin Peaks). Gancho que é também sugerido pela emblemática cena em que Laura Palmer surge no red room e a anuncia à Cooper: “I’ll see you in 25 years”. Assim é que a terceira temporada retoma o fio narrativo e revela o que teria ocorrido com os personagens 25 anos depois. Contudo, ela acrescenta novos elementos e explora sua atmosfera surrealista de maneira ainda mais radical.

Na nova temporada, Dale Cooper é uma espécie de Odisseu que se afastou de sua estimada Ítaca (Twin Peaks) por 25 anos. Seu regresso é repleto de peripécias surreais e outras cômicas, que lhe salvam a pele em diversas tentativas de assassinato. Cooper volta do Black Lodge em estado de torpor, ocupando o lugar de uma de sua réplicas, Dougie Jones, funcionário de uma empresa de seguros na cidade de Las Vegas. Enquanto isso, os antigos personagens vivem seus destinos e envelhecem na cidade de Twin Peaks. Dr. Jacoby se retirou em um trailer na floresta e vende pás douradas em seu programa de auto-ajuda transmitido via streaming. Nadine, sua fiel espectadora, abriu uma loja de cortinas silenciosas. Shelly e Norma continuam trabalhando na lanchonete Double R, que parece ter parado no tempo. Sarah Palmer segue sua vida solitária, fumando exageradamente e assistindo a programas sobre a vida animal. Tudo parece ter seguido seu curso, mas sem abandonar o aspecto bizarro e sombrio da aparente normalidade de Twin Peaks.

O retorno da série continua a tratar da temática do duplo, do insólito, de assassinatos misteriosos e da mescla entre o real e o surreal. No entanto, aspectos que foram criticados na primeira versão permanecem. Trata-se de um uma série branca, onde a participação de personagens negros é quase nula. Há um certo sexismo obsoleto e, por vezes, anacrônico. As personagens femininas e seus corpos são fetichizados, principalmente pela via da violência (a brutalidade do assassinato feminino continua sendo uma constante). Nesse sentido, a série funciona como uma espécie de retrato distorcido da América profunda, representada por um população branca, patriarcal e conservadora, que habita o pacato e, ao mesmo tempo, obscuro interior do país. Contudo, a construção espaço/temporal é ampliada, sem abandonar suas origens. Além de Twin Peaks, há Nova Iorque, Las Vegas, Buckhorn (South Dakota) e Odessa (Texas). A série volta ao ano de 1945, marcado pelo lançamento de um teste da bomba atômica no deserto do Novo México, que teria desencadeado a emergência de forças malignas, como BOB. O acréscimo de personagens (mais de 200, no total!), lugares e épocas resulta no acúmulo de mistérios. Porém, parece não ser um objetivo a resolução de todos os enigmas apresentados. Mas há uma beleza fascinante em cada peça desse confuso quebra-cabeça. Twin Peaks compreende uma mitologia tão ampla e desagregada que torna-se verossímil, por mais estranha que pareça.

Há um tom de homenagem fúnebre que distingue a nova temporada da Twin Peaks de 1990, já que a série atual apresenta um elenco de atores e atrizes envelhecidos e, alguns, já falecidos (como é o caso de David Bowie, Catherine Coulson, Don S. Davis e Jack Nance). Além desses, os atores fetiche de Lynch estão todos reunidos na terceira temporada (Laura Dern, Naomi Watts, Harry Dean Stanton e Patrick Fischler). Twin Peaks, o retorno é, em parte, fiel a si mesma: complexa, misteriosa, insólita, perturbadora, desconcertante. Por outro lado, a série parece nos abalar de maneira distinta daquela dos anos 1990. A paródia da soap opera e a metalinguagem televisiva foram deixadas de lado. Além da narrativa fragmentada, a nova Twin Peaks parece se complexificar pela via estética, numa espécie de estranho deleite visual e sonoro. Um verdadeiro império dos sonhos. Destaque para o episódio 8, que tem grandes chances de ficar para a história como uma das experiência mais surreais da televisão.

O design de som, assinado por Lynch, exerce papel fundamental na atmosfera da série. O desfile de bandas de som etéreo no palco do Road House contribui de maneira singular para o clima da história. Destacam-se as performances de Rebekah Del Rio e de Julee Cruise, a dança de Audrey Horne e a apresentação de James Hurley, que resgatam momentos musicais que marcaram as primeiras temporadas. A construção temporal investe nos tempos mortos, tão pouco convencionais na ficção televisiva. Há uma elegância sublime no uso do silêncio e do vazio. O retorno de Twin Peaks desdenha da coerência narrativa e investe na fragmentação e no deleite estético. A construção visual dos episódios nos fazem lembrar que Lynch começou sua carreira como pintor. A série retoma, de maneira mais profunda, o diálogo de seu criador com o surrealismo e com as pinturas de Edward Hooper, René Magritte e Francis Bacon.

A terceira temporada exige um nível de desprendimento e entrega que não é comum à atual cultura seriefílica, que a própria Twin Peaks ajudou a criar há duas décadas. Não se trata de uma série em que o esforço de fãs, em fóruns e redes sociais, para compor teorias e conclusões rápidas a fim de solucionar os mistérios apresentados seja algo esperado e recompensado. Já que soluções, muitas vezes, simplesmente não existem. Para entrar na proposta criativa da nova Twin Peaks, é preciso estar familiarizado com a obra de Lynch. Trata-se de uma série para ser apreciada enquanto exercício autoral, dentro do conjunto da obra de um diretor que se encontra em condições de exercer sua criatividade sem o dever de agradar a produtores e a fãs. Sem dúvida, uma proposta que não agrada a todos, e não tem essa pretensão.

A terceira temporada surpreende na capacidade de se reinventar e de impactar, mais uma vez, a cultura audiovisual. Não é à toa que o crítico Inácio Araújo declarou ser o retorno de Twin Peaks a “aventura cinematográfica do ano”. A série abala não só a TV, mas também o cinema. Nesse sentido, Lynch e Frost alcançaram seus objetivos: Twin Peaks pode ser considera como um híbrido, uma grande obra cinematográfica fragmentada em 18 partes para veiculação na televisão. Trata-se de uma série pós televisiva e pós cinematográfica. Uma série da estrada perdida e do império dos sonhos. É Lynch em estado puro, desconcertante.


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