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Poesia de asfalto e fuligem

“Os 12 Trabalhosâ€, de Ricardo Elias (Brasil, 2007)

por Rodrigo Campanella

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Se há um personagem maior em “Os 12 Trabalhosâ€, o segundo longa-metragem de Ricardo Elias, seu nome é São Paulo. Ainda que a câmera não desgrude por um momento de Heracles, ex-interno da Febem tentando conquistar uma vaga de motoboy, é a capital paulista, centro nervoso da vida financeira do Brasil, que está em foco. Mas o interesse por SP é muito maior do que a paisagem, turística, inútil ou afetiva: impregnado na tela está o racha que parte São Paulo ao meio – e que também quebra o Brasil em uma linha horizontal.

Como notou a jornalista Ana Paula Sousa, na revista Carta Capital 435, é com a própria rachadura que o filme se inicia, quando o narrador anuncia ao fundo: “A cidade é pedra, é ferro. As pessoas vão e vêm. Bairros indicam classe. Dependendo de onde você nasceu, já é. Sua história está escrita antes mesmo dela começarâ€. Mas são as sutilezas de cada um dos 12 trabalhos do primeiro dia de serviço desse motoboy que anunciam o detonador que implode, diariamente, aquela cidade.


Lucinha Lins também precisa de um mito grego

Heracles é a nomenclatura original grega do herói que ficou mais conhecido por seu nome romano: Hércules. Em sua lenda, como na trajetória do motoboy, as 12 tarefas são uma forma de conquistar a redenção. Hércules, enlouquecido por Hera, havia assassinado a mulher e os filhos. O Heracles paulistano, abraçado pela marginalidade, foi preso por roubo e feito interno da Febem. O novo emprego não é apenas sobrevivência, é possibilidade de reconquistar respeito e dignidade.

Se a redenção mítica de Hércules era certa, a de Heracles (o ótimo Sidney Santiago) é um horizonte constantemente empurrado para mais adiante. Mas esse peso vem embalado de modo cuidadoso – e a sutileza é indispensável porque “Os 12 Trabalhos†é sem qualquer dúvida um filme de amor. É uma carta dolorida, regada por um filete de sangue de alto a baixo, endereçada a uma cidade que se ama mas cuja morte se anuncia a cada dia, como quando ela arranca por seus caminhos a vida de dois mobotoys por dia, estatística levantada pela produção.

Não é um filme romântico, mas um filme feito de amor. Não há outra palavra que consiga explicar, porque essa é a palavra certa. E não é apenas afeto por uma cidade, pedra, cimento, grama, vidro, mas pelos caminhos que ela abre (não à toa o centro é um motoboy), pelos encontros que ela proporciona, pela gente que ela embala, pelo mundo que ela gesta. Nisso, “Os 12 Trabalhos†é um filme-irmão de “São Paulo S/Aâ€, clássico de Luiz Sérgio Person ou de “Rio 40 Graus†de Nelson Pereira dos Santos: cartas preocupadas (e preocupantes) mas comprometidas com os lugares que as trouxeram ao mundo.


Flávio Bauraqui e Sidney Santiago:
porque mitos precisam ganhar a vida

Há também um eco estranhamente forte de “Caminhos Perigososâ€, segundo filme de Martin Scorsese, sobre a vida cotidianamente marginal em Little Italy, bairro onde o cineasta americano foi criado, em sua querida Nova York. Scorsese é outro severamente interessado e comprometido com sua cidade, e algo da total e potente incerteza diante da vida daqueles “Caminhos†aparece nesse “Os 12 Trabalhosâ€. Se a violência lá era estampada, crescendo como tensão até arrebentar na tela como uma surra ou tiro, no filme de Ricardo Elias ela é silenciosa, permanecendo como tensão constante.

Heracles tem a expressão impassível e desconfiada de quem voltou traumatizado de uma guerra. A secretaria do andar de advocacia treina o desprezo calculado que pode lhe garantir o emprego por mais alguns anos. O segurança é impassível ao não questionar a burrice da ordem de impedir o uso do elevador mas incapaz de acenar com a solução estampada logo à frente. A secretária da firma de motoboys guarda em cada vinco e na maquiagem do rosto a esperança sofrida de quem mantém o porte apesar das lambadas da vida.


Cynthia Falabella encontra um mito no balcão

Em cada personagem, dos clientes de Heracles ao motoboy acidentado pelo qual ele pára alguns minutos, é possível ler no rosto uma história. Muitas vezes, o próprio Heracles inventa, na despedida, uma pequena previsão sobre o futuro do outro – daqui a um, três, dez anos. Dessa importância de cada um – desse comprometimento - é que surge o amor do filme, mas também é onde ele se revela mais exigente. “Os 12 Trabalhos†é um filme que só funciona com proximidade, e abertura.

Se em “300†o ideal é se divertir sentado na última fileira, para evitar que a onda sonora arremesse você na parede, o melhor na história de Heracles é sentar o mais perto possível e estar preparado para algum nó intrometido subindo pela garganta. Quanto mais afeto você oferece, mais sinceridade “Os 12 Trabalhos†retorna em troca. Apesar da trilha instrumental tão bem-arranjada quanto empolgante (mérito para Rodrigo Maranhão e André Abujamra), é um filme em sua maior parte intimista, próximo de quem o asssiste no escuro. Quando a moda, até no cinema, é jogar com cores e linhas e cortes para fazer intimidade sem emoção, esse filme é um incômodo, até para quem escreve sobre ele.

Principalmente porque é nos vãos, nos espaços em branco, no silêncio constrangido do motoboy diante da secretária calculadamente pedante ou da corrupção barata e cruel do guarda que esse filme constrói a si e a uma espécie de doença paulistana, em que a concentração daquela cidade - de dinheiro, de gente, de contradições, de pobreza, de fartura, de cultura, de ‘modernidades’, de conservadorismo, de carros, de comidas – acaba se tornando tão densa que é tragada pelo próprio peso. Nesse vácuo é que se constrói uma muralha de classes e bairros e avenidas que encaram uns aos outros com medo revertido em ódio.


...e todo mito também precisa de um descanso

Ricardo Elias dá a configuração do vazio de uma metrópole ao olhar integralmente a cidade que ama e, dentro dela, aquele que sempre é o pior representado em qualquer imagem que apareça – o jovem de classe baixa – seguindo o percurso iniciado em seu primeiro longa, “De Passagemâ€. A cidade vista pela lente de Elias é continuidade daquela que Person já havia antevisto por dentro em sua “São Paulo S/Aâ€, São Paulo Sociedade Anônima. Percorrer o filme por esse olhar dá satisfação como arte. Mas dói, muito.

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