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Chama

20.03.07

por Rodrigo Campanella

Dias Selvagens

(A Fei Jing Juen/Days of Being Wild, Hong Kong, 1991)

Dir.: Wong Kar-Wai
Elenco: Leslie Chung, Maggie Cheung, Tony Leung, Jackie Cheung, Andy Lau

Princípio Ativo:
globo da morte

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Zygmunt Bauman. Seria desonesto não começar por ele. Sociólogo, polonês, ex-exilado, é um dos grandes e dinâmicos, irônicos e saudavelmente desesperançados pensadores da modernidade tardia, essa que nos envolve nesses primeiros 2000. Desesperança: alcançamos ou acreditamos em uma liberdade social, afetiva e moral absoluta que, de fato, só vem rapidamente afundando o mundo numa grande feira livre onde pula-se de galho em galho procurando a melhor etiqueta de preço.

Por conta de uma monografia, e vontade própria, tive contato algo aprofundado com as idéias de Bauman. O caso é que isso pode deixar um espectador – ou um crítico – inapropriado para Wong Kar-Wai. Porque é como se esse chinês arrancasse dos livros do outro algumas dezenas de páginas, enfiasse umas dentro das outras esculpindo uma flor de papel e então solenemente tacasse fogo em tudo. Um filme de Kar-Wai é essa flor em pleno fogo. A dificuldade é simplesmente se entregar ao filme quando a vista insiste em achar ali um (ótimo) passeio sociológico.

“Dias Selvagens†é uma peça interessante no quebra-cabeças de Kar-Wai porque é aquela que revela o enigma que está sendo montado mesmo que ainda nem se aproxime de sua forma final. Aqui, o cineasta ainda não assina cada milímetro da imagem com um toque visual ou sonoro que permite reconhecer um filme seu até da esquina do cinema. Há uma liberdade de andamento convivendo com todas as marcas de Kar-Wai ainda em embrião.

Estão ali a penumbra dos quartos de hotel, os relógios redondos e seus ponteiros em seta, o tédio de uma cama que nunca é permanente, a trilha sonora que revitaliza o ‘brega’ ou ‘melodramático’ em algo sinceramente emocionado. E, claro, a luz aspergida sobre todo o quadro, pairando de um rosto a uma cômoda como um halo, clareando a incerteza de que aquilo pode ser fato ou um grande sonho tocado a pesadelo. Se é que as duas coisas já não são apenas uma.

O que alimenta esse cinema é a certeza de que há outra história (de amor) a ser contada, que será primeiro bálsamo e depois novo vinagre lançado na ferida anterior. O diretor enquadra gente buscando algo que torne palpável a certeza - que eles têm - de que o amor é bom, a vida compensadora. Mas nesse trem a chegada é sempre a promessa da próxima estação.

Mais do que a quadrilha de Drummond, Kar-Wai faz viver um ciclo de relações que não pode ser contabilizado no final, que devora seu princípio e rompe o passado olhando adiante. No final das contas, é um sincero e legítimo piromaníaco de emoções.

Vida é sonho. E sonho que se sonha junto podia ser realidade.

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