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Feliz ano sabático

por Daniel Oliveira

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Aos fãs, admiradores, seguidores ou meros espectadores do ator Selton Mello, uma má notícia. “No momento, sou um ex-ator, não sei quando vou voltar a atuarâ€, afirmou o agora diretor, na coletiva de lançamento de seu longa “Feliz natal†em Belo Horizonte. E ele diz isso com serenidade, lata de Coca na mão, um cigarro na outra, o cabelo cuidadosamente desarrumado, camiseta vermelha, jeans, tênis e um sorriso sóbrio de quem não tomou a decisão por impulso, mas sim por clarividência.

“Sou ator desde criança e chegou uma hora em que tô me questionando qual a importância, o porquê...disso tudo, inclusiveâ€, ele explica ao apontar para a renca de jornalistas, assessores e pessoas ao seu redor. Realmente pode ser um pouco assustador. Desde que chegou na tenda da Mostra CineBH, onde aconteceu a coletiva, Selton foi abordado por assessores, entrevistado por um monte de canais de TV, sendo perguntado sem tempo para responder, enquanto dezenas de tietes fotografavam o ‘astro’ com seus celulares. Foi difícil até arrumar um espaço (e tempo) para ele se sentar com os jornalistas de impresso e sites para a coletiva.


Selton, a coquinha e o segurança-coadjuvante.

E já são 27 anos assim. Isso mesmo: Selton Mello tem 27 anos de carreira – mais do que eu tenho de vida. E, segundo ele, só agora o público vai começar a conhecê-lo. “São mais de 20 filmes, um monte de novela, teatro. Mas eles conheciam o personagemâ€, ele reflete. “Quando você dirige, é você. É um retrato da sua alma, da sua maneira de ver a vida, seu humor, incertezas, fantasmas. E é bonito ver como isso bate, sabe?â€.

Selton parece mesmo ter sido picado pelo bichinho da direção. Para ele, a experiência foi “um processo absolutamente autoral e me fez pensar em tudo que eu já fiz e quero fazer daqui pra frenteâ€. Ciente de que existe um senso comum de que – nas suas próprias palavras – "o Selton faz as coisas de que gosta, tem uma certa independência", ele afirma que “é agora que vou começar a fazer isso. Se eu era criterioso, vou ficar muito maisâ€.

E além de critério, “Feliz natal†é um filme claramente dirigido por alguém com paixão pelo meio. Paixão pelo cinema e suas idiossincrasias, especificidades e os meandros de sua linguagem. O longa é marcado por imagens fortes, secas, decrépitas, carregadas dos sofrimentos e traumas de uma família disfuncional. “O filme está em ruínas. A família está em ruínas, tudo pode ruir a qualquer momento. E isso se reflete na fotografia tambémâ€. Para ele, o objetivo do longa é fazer com que “o público pudesse quase tocar aquelas dores, tatear as infelicidades ali, como se fossem seus vizinhosâ€.

Os diálogos são poucos, alguns improvisados (“eu dizia para os atores: ‘façam o favor de não seguir isso aí que eu escrevi’â€) e a trama é reflexo das várias influências do artista Selton Mello. “Em um primeiro filme, acho que essas referências ficam mais explícitasâ€, pondera. Ele cita uma série de nomes – do cineasta John Cassavetes, ator como ele, ao dramaturgo Harold Pinter, autor da peça “O zeladorâ€, cuja montagem brasileira Selton protagonizou. Ele diz que se inspirou na tendência de Pinter de trabalhar com as entrelinhas, de dizer mais com o contexto do que com o que é dito. “Isso é muito de família. E muito de natal. Você gostaria de dizer algumas verdades para aquele tio teu só que, ao invés, vai falar algo do tipo ‘e o Cruzeiro? G4, ein? Vai ou não vai?’".

Selton lista ainda o cinema latino-americano contemporâneo, do qual acha estar mais próximo do que da própria filmografia brasileira. “Meu filme tem uma melancolia que é prima do cinema uruguaio, argentino, de que eu gosto muito como espectadorâ€. “Feliz natal†trabalha na tradição desse cinema que escrutina a classe média - e que seu diretor afirma ser a contramão da produção contemporânea nacional. “Talvez o Jabor fosse um cara que sabia fazer isso muito bemâ€, ele opina, ao se afirmar fã do cinema brasileiro dos anos 70, provavelmente a influência mais clara de seu longa. “Se você me perguntar qual o melhor filme brasileiro já feito, eu nem penso duas vezes: ‘O bandido da luz vermelha’â€, dispara.


Selton ♥ Costa Rica.

Próximo destino: Paraty?

Com exceção dessas influências e de sua paixão por cinema, o (mineiro) Selton não é de falar muito. Assim como seu filme, ele é um sujeito de poucas palavras e respostas curtas, gesticula pouco e pensa pausadamente sobre cada frase que vai dizer. A ponto de parecer quase natural que ele vá para trás das câmeras e deixe outros falarem na frente dela. Mas não confunda outros com qualquer um.

O elenco bem escalado é um dos trunfos de “Feliz natal†e cada membro chegou ao filme de forma diferente. “Leonardo Medeiros é um ator bom, que eu sabia que me daria segurança pra ficar atrás das câmeras. Sempre soube que ele estaria no filme, só não sabia que irmão ele ia fazerâ€, ele comenta sobre seu ‘irmão’ em “Lavoura arcaicaâ€, que acabou interpretando o protagonista de seu longa. Outros papéis foram preenchidos com gente que Selton conhecia do teatro “misturados com uma subversão que eu adoro fazer - por exemplo, botar o Lúcio Mauro fazendo um pai austero, um personagem que nunca dão pra eleâ€, diz, com a segurança de quem sabe do que um ator gosta.

Já Darlene Glória é um caso a parte. O roteiro de “Feliz natalâ€, que Selton escreveu com o também ator e amigo Marcelo Vindicatto, teve seis tratamentos. Os cinco primeiros não contavam com a personagem da mãe. Foi quando ele entrevistou a musa do cinema marginal no último episódio de seu programa Tarja Preta no Canal Brasil. “Fiquei encantado com a força, a história da vida dela e pensei ‘essa mulher tem que estar no filme’. Perguntei se queria filmar comigo e ela disse ‘quero’â€. Faltavam seis meses para o início das filmagens. A mãe foi incluída no roteiro e “ela incendeia a tela. Não consigo imaginar esse filme sem a mãe. Ela paira sobre tudo, é a mãe de todos os malesâ€, afirma Selton, acrescentando que um de seus grandes orgulhos com o filme é promover o retorno da atriz.

Outro retorno em “Feliz natal†é o do ator Paulo Guarnieri – que você deve se lembrar das novelas “Bebê a bordo†e “Rainha da sucataâ€. Selton conta que pensou nele para o papel ao vê-lo na foto de uma matéria sobre o enterro de seu pai, o também ator Gianfrancesco Guarnieri. “Ele tinha se desencantado com a profissão e montado uma pousada em Paraty,...perto de onde eu vou montar a minhaâ€, brinca.


Selton sai de cena (e de foco).

Mas nem tão brincando assim. Selton anunciou aos jornalistas presentes o início de seu ano sabático (“e por um ano, eu quero dizer um booom tempoâ€), em que ele pretende se afastar das telas. Tanto da frente quanto detrás delas. “Menos exposição, menos tudoâ€, declarou. O que não quer dizer que vamos sentir falta dele. Quatro filmes seus, como ator, chegam às telas até o ano que vem: “Federalâ€, do diretor Erik de Castro (Senta a pua); “A erva do ratoâ€, de Júlio Bressane (Cleópatra); “A mulher invisívelâ€, de Cláudio Torres (Redentor); e “Brazucaâ€, do estreante Henrique Goldman.

Esse último é a esperada cinebiografia do brasileiro Jean Charles, assassinado com sete tiros pela Scotland Yard em Londres. Selton conta que a filmagem, encerrada recentemente, “foi difícil porque eu já tava nessa de querer dar um tempo. Mas foi bem comovente conviver com a família do Jean Charles e os amigos deleâ€. Para o ator, “Brazuca†será sobre um universo interessante, e pouco conhecido, desses brasileiros “que vão pra lá ralar duro, ser faxineira, peão de obra...â€.

Por enquanto, é isso. E não há razão para luto. Selton afirmou que pretende dirigir um segundo longa, “ainda mais simples e independente que o primeiroâ€. E para quem insiste em vê-lo atuar, ele confessa que “há a possibilidade de um filme lá fora, talvez, no ano que vem - um convite que surgiu por causa desse longa do Jean Charles...â€

Estaríamos diante de um novo Rodrigo Santoro? Nem tanto. “Acho [a possibilidade de atuar no exterior] interessante. Tenho vontade de trabalhar com meus ídolos. Imagina eu atuando com o Sean Penn? Ia ficar nervoso e tudo...â€. Ok, acalmem-se: os olhos de Selton Mello ainda brilham para (alguns) prazeres da atuação.

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