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Amimurga Letra
Camilla Felicori
A quem a letra não urge? Considerando essa necessidade da escrita inerente a muitos, cá estão algumas letras que buscam cores como tratamento para dores diversas.

Carta

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Querida A.,

Escrevo para contar que perdi seu endereço. Se eu não o tivesse perdido, talvez não estaria escrevendo-lhe esta carta, ironia do destino, você diria, mas dessa vez não há graça.

Imagino você se perguntando sobre o motivo que leva alguém a escrever uma carta que muito provavelmente não será lida. Escrevo porque não sei mais a quem recorrer. Nesses últimos anos tenho experimentado solidão de fazer inveja a ascetas ou monges. Você riria ao ler essa comparação, imagino. Outra vez não há graça.

O ponto primordial que me leva a escrevê-la é que não há mais graça. Desde que você partiu, esperei em silêncio por respostas ou notícias. Todos os dias pensei que chegaria, mas nunca chegou. Lembro-me do dia em que anotou meu endereço em sua caderneta azul.

- Te escreverei assim que chegar lá, me prometeu.

Agora me pergunto onde é lá. Não deve ser o mesmo lugar de ali, onde você está; caso o fosse, eu já teria recebido algo.

Talvez você esteja passando por dificuldades e não possa pagar o selo, imagino. Ou então a situação forçou o racionamento, de modo que o papel está mais caro que o selo. Nesse caso, digo-lhe, ficaria contente mesmo com um envelope vazio. Eu o pegaria e colocaria dentro de outro, mas de cor rosa, que é para combinar com o seu cabelo. E assim poderíamos trocar silêncios através de envelopes vazios de papel mas cheios de sentimento.

Hoje escrevo para dizer que sinto saudades, mas que cansei, não vou esperar mais, nem te responderei caso você porventura chegue até lá e decida cumprir sua promessa. Ninguém espera por tanto tempo. Pelo menos eu não.

Tenho raiva de seu silêncio e também de todas as outras cartas que você escreveu - nenhuma delas para mim. Eu sei que você sempre gostou de escrever cartas. Agora me enfado ao pensar que, mesmo se eu tivesse seu endereço, você talvez não me respondesse, o que faz dessa escrita um ato duplamente inútil. Por que insisto, então, em continuar?

Continuar a escrever a carta? A viver? A sorrir para essas mulheres tão histéricas sentadas ao meu lado falando com voz fina como a sua. Bah, aconteceu o que eu temia: ao lembrar-me de sua ausência, perdi a vontade de escrever. A gente está sempre fugindo de tudo. Estou fugindo de mim ao escrever para você. Tudo isso porque sei que quem não deu o endereço fui eu, que me afastei de ti por um motivo que, naquela época, me pareceu fatal: você mentiu para mim. Cá estou mentindo ao inverter a história.

Desisto. Até um dia, quem sabe?

Abraço,
B.

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Camilla Felicori gosta muito de cores.
camilla.felicori@gmail.com

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