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Amimurga Letra
Camilla Felicori
A quem a letra não urge? Considerando essa necessidade da escrita inerente a muitos, cá estão algumas letras que buscam cores como tratamento para dores diversas.

Começo

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- Sou eu, não se lembra?

Ela disse com voz leve, doce como pele de pêssego, como se não fossem necessárias palavras. Ela, que sabia se expressar melhor pelo rosto, pelo tão constante sorriso em sua face. Olhou para ele, ele e seu hábito de olhar para tudo ao redor, o mínimo, cada detalhe do único e do outro, mas não os dela. Mas logo seus pensamentos retornam, voltando-se para ela, que lhe sorria, aqueles lábios de sorriso doce, um detalhe... pele de pêssego.

Olhou para o chão, verde, grama fininha cortada anteontem, parecia. Nova, assim como ela lhe aparecia. Uma novidade diferente de tudo que ele esperava, tudo que ele imaginara à espera do retorno. A doce imagem dela lhe abandonara há tempos quando ela se fora. Deixou a ausência de um abraço e ficou com o silêncio de uma despedida inacabada. Tudo por causa de olhares, como poderia a dor suportar o fardo do olhar? Sem olhar sequer perceberia cores, e sem percebê-las talvez nem se lembrasse...

- Sou eu, não se lembra?

Foi isso que ela disse. Por um instante ele hesitou. Sua mente se perguntava, quem, quem é essa desconhecida que dizia ser ela?

- Vai para onde agora? Ela perguntou.

Carlos hesitou por um momento. Parecia brincadeira, dessas de filmes sacados, desses que todos choram até chegar ao lindo final feliz.

Onde. Advérbio de lugar. Onde sempre lhe fazia lembrar de longe. Longe dela. Todos esses anos, todo esse silêncio deixado, toda essa incapacidade de bem utilizar as palavras. O tempo nada era: construção cultural, ele estudara uma vez numa dessas disciplinas que não se compreende bem o que o professor diz. Logo, anos nada eram, se o passado não houvesse não haveria ausência, se ela não perdurasse na memória ela simplesmente não teria existido?

Mas ela existia ali, naquele momento, belo presente, frente a ele. Vestido salmão com pequeninas flores na barra, ele percebeu o detalhe, nada de roxo. Rosado, como as bochechas dela, sorrindo.

- Não se lembra?

Foi o que ela disse. Sim, claro que se lembrava. Desde então evitava roxo, pisava em formigas, desprezava margaridas.

- Como se fosse adiantar alguma coisa, lhe dissera uma vez amigo.

Bumerangue. Determinismo. Destino.

Ele evitava acreditar nessas coisas. Concordava mais com qualquer teoria que aproximasse o mundo da total e completa contingência.

Heráclito, o fluxo, o rio muda. E a mudança não combina com bumerangue, não volta, ele pensava.

Olhou para o salmão do vestido e logo subiu os olhos para o rosinha do rosto. Desceu uma lágrima, dessas que dá vontade de arrancar o peito. Queria abraçá-la bem forte. Isso significava vencer seu coração. De pedra. Incolor.

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Era um dia ensolarado esse que vos conto, de amarelo vivo. O que é vivo retorna? Segundo a do fluxo não, não volta, nada de necessidades.

Mas o contingente pode parecer necessário, não?

Pergunte a Carlos.

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Acabamento

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Camilla Felicori gosta muito de cores.
camilla.felicori@gmail.com

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