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Amimurga Letra
Camilla Felicori
A quem a letra não urge? Considerando essa necessidade da escrita inerente a muitos, cá estão algumas letras que buscam cores como tratamento para dores diversas.

O outro

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Carmelina gostava de procurar cacos seus nos outros. De contente e alegre ela sabia sempre os melhores caminhos, os melhores percursos, para se chegar onde quer que fosse. Às vezes caminhava muito, mas chegava, ela sempre chegava, e o que a permitia uma certa tranqüilidade, aquilo chamado pelos gregos de ataraxia, era a quase certeza que chegaria. Isso porque se considerava uma moça de sorte, tudo acabava dando certo e se ajeitando, a única coisa que não era definitivamente ajeitada era ela: cabelos despenteados, rosto de expressão cansada, corpo trêmulo, mas sempre um sorriso, um sorriso verde que refletia sempre a sua tranqüilidade esperançosa. Para ela era como se não houvesse liberdade, portanto ela não teria que se preocupar com quaisquer escolhas que fizesse, pois, ao final, ela sempre chegaria ao mesmo lugar. Com essa visão determinista da vida ela não via motivos para se afligir e assim seguia a vida, sorrindo.

Um dia, seguindo um dos caminhos que escolhera, se deparou com o espelho. Levou um susto enorme ao enxergar não apenas cacos de si mesma, mas ela toda, completamente traduzida em um outro, o seu outro. No primeiro momento não se assustou, apenas pensou tranqüilamente, [que pessoa estranha essa que acabei de conhecer], mas logo percebeu o que ocorria, não era ele, não outro, mas ela, completamente identificada, em um espelho no qual poderia tocar, sentir, ouvir, um eu-outro completamente externo a ela.

Começou então a sentir-se incomodada com o sorriso esverdeado dele, e com toda a leveza como ele via as coisas, a vida e as cores, e teve uma vontade imensa de fugir. Olhou para os lados e viu não haver nenhum obstáculo que a impedia de fugir e logo em seguida percebeu viver um momento muito distante da ataraxia outrora imperativa em sua vida. Sentiu uma pequena dor no peito quando ele a olhou com aqueles dois olhos imensos. Totalmente vulnerável pensou o que poderia dizer-lhe, mas não conseguia dizer, nem correr, nem fugir. Ficou ali em pé, parada, tremendo, violeta, brilhante.

Olhou para o chão e ali encontrou algum apoio para o que sentia, o chão não refletia sua imagem, o problema era o espelho, o espelho logo descobriria todos os seus segredos e ânsias, todo o seu sofrer sorridente, toda sua alegria lenta, toda sua presença aparentemente tranqüila, mas verdadeiramente leve.

Ele a olhou e viu uma pessoa totalmente diferente dele, totalmente outra, [que mulher estranha essa que me olha assim, tão assustada, como se eu fosse capaz de feri-la, de parti-la em pedaços]. Olhou para os lados e não havia ninguém perto que o pudesse ajudar na compreensão daquela estranha tremendo frente a ele. Que novidade era essa de momentos estranhos como aqueles? Pensou em dizer algo para expressar o estranhamento, mas isso poderia parecer a ela um pouco... rude. Olhou-a novamente e logo o sentimento de estranhamento mudou-se. Vontade de apreender aquela alteridade e buscar compreender-se a partir dela. Ensaiou um sorriso, sentiu vontade de abraçá-la e assim o fez. Ela, que não teve forças para desvencilhar-se nem sorrir, deixou-se abraçar e chorou todas as lágrimas de sua presença ambígua.

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Camilla Felicori gosta muito de cores.
camilla.felicori@gmail.com

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