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Amimurga Letra
Camilla Felicori
A quem a letra não urge? Considerando essa necessidade da escrita inerente a muitos, cá estão algumas letras que buscam cores como tratamento para dores diversas.

Desengano

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Entrou no carro com pressa, fazia frio. O que incomodava não era o frio. Eram quase três da manhã e precisava voltar para casa. Fazia dez minutos que olhara no relógio e antes de girar a chave olhou novamente para o relógio de pulso. Eram duas e quarenta e sete. Sentia-se leve, mas quase sem forças por não ter conseguido impor-se tempo dessa vez. Dessa vez não resistiu aos encantos, deixou-se levar, colocou-se temporariamente fora do tempo para... Já eram duas e quarenta e nove. Teria que chegar em casa, teria que sentir outro cheiro, que possivelmente esperava com inquietação. Lembrou-se de tempos outros quando tudo era mais claro e as cores eram de outra tonalidade. Viviam juntos o sorriso de uma presença tão próxima. Era amor o que sentiu por tantos anos. Um amor forte, que parecia a princípio imune a quaisquer oscilações. Mas com o tempo foi-se a presença una. Ficou o silêncio de uma cumplicidade vazia, já que ultimamente o que fazia sem controlar era falseá-la. Falseava uma cumplicidade, e desde que tocara este novo corpo, perdeu a vontade de deitar-se em sua casa. Mas em casa alguém esperava, sabia que esperava. Sabia que não se espera acreditar trabalhar até as duas e meia em um projeto de pesquisa, talvez até seja possível, mas não quando há alguém esperando em casa. Dirigia sem muita pressa, afinal o tempo já passara mesmo, alguns minutos a mais não mudariam o que ocorrera, não mudariam o que já se fora há tempos. Cidade vazia e silenciosa, observou as lâmpadas alaranjadas dando à noite no centro da cidade um estranho ar de amanhecer.


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Não deixava de pensar no olhar que alguns minutos antes lhe pedia mais transparência, um olhar que cansava de fugir, esconder-se. Hoje diria, hoje olharia nos olhos e diria alguma coisa sobre essa mudança, alguma verdade sobre aquilo que mal existe ou sobre aquilo novo que começou a existir. Olhou no relógio, viu os ponteiros passarem enquanto o sinal não abria, mas não viu as horas... O tempo dessa vez parecia passar mais devagar. Chegaria em casa, e buscaria dizer o que tanto afligia. Estaria dormindo, só, no frio? Estacionou cuidadosamente o carro. Saiu, sentiu frio, logo calor, logo frio, apressou o passo, bateu a porta com força como nunca fizera e sentou-se na poltrona; sabia que acordaria. Dessa vez acordaria. Serviu-se de um copo alcoólico e esperou. Balançava as pernas quase violentamente, esperava. E logo se aproxima, rosto de olheiras quase fundas que miram para o copo, para o relógio da parede, para o copo, para as pernas que balançam com certa inquietude. Terminou o copo, serviu-se de outro. Olharam-se em silêncio e logo lhe foi perguntado o que queria há tempos responder. Havia outra pessoa em sua vida.


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{encontrado em Beauvoir, S. A mulher desiludida}

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Camilla Felicori gosta muito de cores.
camilla.felicori@gmail.com

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