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Papel Picotado
Nian Pissolati
Escrevendo, quando em vez.

O grito

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A fumaça do café lhe embaçava as lentes espessas dos óculos enquanto lia o jornal. Na mesa, além da xícara, o cinzeiro que abrigava o último cigarro de seu maço. O embaço em suas pequenas lunetas não o incomodava. Notícias de um mês atrás não lhe interessavam. Naquela manhã seu maior compromisso era com o café requentado de dois dias. Ainda que o gosto nublado lhe atacasse os nervos, o calor da fumaça aspirada nos brônquios lhe permitia experimentar uma monotonia de pensamentos. A aventura durava o tempo da fumaça lilás do cigarro traçar o caminho da sua boca, preencher devidamente seus pulmões, para finalmente esvair-se novamente pela boca. Era-lhe um exercício penoso, porém quase prazeroso, de ter em mente unicamente o gosto nublado de fumaça e café.

E sem se dar conta, deixou o velho jornal de lado, e olhava agora, as duas grandes manchas que acabaram por surgir em sua mesa. Duas manchas grandes e negras, que vieram com o tempo, com o uso. A mesa, mobília que cumpria o dever básico de lhe trazer todos os dias a memória da família. Onde escutou por anos a voz grave do pai, que no intervalo entre as rápidas, porém eficientes garfadas, lhe trazia a cada dia a dureza dos homens lá fora. Histórias que tinham começo, meio e fim, naquela mesa. E no término de cada refeição ainda enxugava o rosto com seu lenço gasto, num teatro calculado para que sentisse a gravidade de cada gota que brotava na fronte. As gotas de seu esforço diário. Isso tudo acompanhado do silêncio da mãe. Silêncio que na hora de dormir era trocado pela maciez do toque de suas mãos mergulhadas em seus cabelos espessos, brincando com o embaraço de seus cachos, e quando alcançavam-lhe a nuca, tinham em seu corpo a resposta em pequenos arrepios de agradecimento. E junto do beijo, sussurrava-lhe um ‘boa noite’, tão singelo que lhe conduzia a um sono banhado por seu cheiro. Mas na mesa, sempre o silêncio, que se incrustou nas manchas, na madeira.

Nesse momento foi necessário retirar os óculos, transferindo o embaço das lentes para si mesmo. E quando começou a pensar em tudo que veio depois dos primeiros anos começou a sentir a ânsia de que tanto fugia. Um sentimento que começava na dor aguda da fome que machucava o estômago, passando pela tosse cansada e freqüente que retumbava em seus pulmões, terminando no latejar de cabeça que há anos lhe atormentava a mente, e fazia do mundo uma grande e doentia confusão a qual não pertencia. E já que não poderia mais se proteger disso tudo fez questão de lembrar e pormenorizar o dia em que ainda criança, em vez da voz grave do pai, ouviu também naquela mesa, a voz fina e estridente de um homem de óculos, de terno surrado e uma maleta preta que não saia do seu lado. Ele era gordo e baixo, e entre um gole e outro de café, anunciava o acidente do pai, que naquela manhã, caíra de um andaime do 14º andar. Dessa vez o silêncio da mãe foi trocado por soluços contidos, e ele, conscientemente, deixou de ser menino, completamente mudo, no momento em que se levantou da cadeira, e sem soltar uma lágrima pousou as mãos por sobre os ombros dela. Durante todo esse tempo o homem gordo insistia em falar, tirando uma porção de papéis da maleta. E a cada palavra que soltava era um bocado de gotas que surgia-lhe na face, mas diferentemente do pai, ele não se preocupava em enxugá-las. E foi ainda com as mãos pousadas nos ombros da mãe e calado que ele viu o homem oferecer a ela uma tinta preta para passar no dedo e marcar nas linhas que ele indicava a única assinatura que era possível a uma analfabeta.

Mas foi também naquela mesa, nos 15 anos seguintes, onde esteve mais perto do céu, ao ver na suavidade daquelas mãos que não sabiam escrever o próprio nome o acalento do cotidiano. Eram essas mãos que se preocupavam em limpar as manchas diárias, os pequenos desastres que eram os quebrares de xícaras, os líquidos derramados, os restos de comidas que caíam do prato. Tentou ainda descobrir algum peso quando começou a lembrar do dia em que estranhamente acordou sem o cheiro de café que lhe confortava o despertar e ao chegar no quarto da mãe, deu com a imagem de uma santa, completamente em paz. E se lembrou que fez questão de decorar os traços de seu rosto, e tocar naquelas mãos que tanto o haviam dado calor, agora tão frias. Mas ao lembrar disso tudo não achou nenhum peso. Achou foi o cheiro de margaridas que uma vez por mês a mãe comprava e enfeitava a mesa.

Quando percebeu a ânsia já não era tão grande. Havia era um descontentamento por ter sido sempre tão próximo do silêncio. Por ter presenciado verdadeiros milagres calado, por ter convivido com pequenos desastres sem dizer uma palavra. Nessa altura não viu outra saída senão jogar por sobre a mesa o café que já estava frio.

A mesa adquiria outra mancha.

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nianpl@gmail.com

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