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Chá das cinco
Nara Mourão
Pequenas sutilezas cotidianas temperadas com uma dose de canela. Ou fragmentos da vida acompanhados de exagero crônico.

Dor no Peito

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Após uma escolha baseada no uso da razão, deixava a faculdade e os grandes amigos na cidade mais acolhedora que conheceu. Voltava a viver em lugar árido por um curso de melhor qualidade. E o curso ajudava a suportar as dores de sentir-se menos querida, menos dona do próprio espaço. Mas todo esse preâmbulo – Quem sabe digno da sua comoção, leitor? – tem importância menor neste relato.

O motivo da crônica começa a aparecer agora. Depois de um mês de aula no ambiente pouco afável, a Universidade entra em greve. Professores pedem reajuste salarial de 18%, o governo federal oferece 0,1%. Os 17,9% de diferença entre possibilidade e desejo determinam a mudança nos dias dela.

Volta para a casa dos pais, à qual sempre se considerou pertencente e pertencedora. Depois de passar por uma semana de ócio (enquanto toda a família continuava incumbida de afazeres), resolve arranjar alguma programação. A greve continua por tempo indeterminado.

Leu um número bem grande elevado a mol (embora qualquer infinitésimo elevado a mol torne-se enorme) de textos do Luis Fernando Veríssimo. Cansou-se, foi quando veio a lembrança: “Tenho um plano de saúde.†Eureca! Já sabia como ocupar os dias por vir: iria a todos os médicos possíveis.

Oftalmologista, dermatologista, clínico geral, homeopata... Quase marcou um urologista, mas foi salva a tempo. As primeiras consultas foram tranqüilas, porém, no clínico geral, a ventura começou a mudar.

– Boa tarde, doutor!
– Boa tarde! Como está? Qual o problema?
– Bom, problema-problema, não tem nenhum sério. Minha mãe é que está me achando muito branquinha e eu estou com uma soneira de dar inveja em Macunaíma.

O médico vira a, agora quase adulta, de fraldas. Riu e comentou com bom humor:

– Você sempre foi morena-jambo, né?

Continuaram o blábláblá por mais algum tempo e o doutor partiu para o exame. Nariz, ouvido, aquela mexida que todo médico dá na barriga (é quando o paciente teme a flatulência), inspiração, expiração, ausculta.

– Você já fez algum ecocardiograma?
– Nunca. Por quê?
– Durante a ausculta do coração, suspeitei de um probleminha. Posso estar errado, seria seguro fazer o exame para confirmar.

O sorriso largo da paciente torna-se miúdo. Tentando manter o olhar firme, ela pergunta sobre o problema. Após desenhar um coração com a mesma forma do corpo de uma borboleta, o médico explica:

– Provavelmente seus átrios direito e esquerdo comunicam-se. Como conseqüência, o sangue arterial e venoso se misturam um pouco. Os tecidos recebem menor oxigenação. Portanto, ao fazer alguma atividade física, cansa-se mais rápido.

A possível cardiopata, que nunca fora uma atleta, ficava mesmo esgotada com as corridas ocasionais (para não perder o ônibus), ou quando nadava, seu esporte predileto.

Saiu do consultório com o pedido de exame na mão direita e o coração problemático na esquerda. Chegou em casa e leu no mínimo uns vinte sites de medicina que se dedicavam ao assunto. Sabia o nome do septo imperfeito, os lugares onde o corte poderia ser feito em caso de procedimento cirúrgico, entre outros detalhes.

Começaram, então, os devaneios... A qualidade textual dela poderia melhorar com o problema: falaria da cardiopatia com a mesma sensibilidade de Manuel Bandeira ao falar de sua tuberculose. Acordou do sonho lúcido, sentia dor no peito. Nunca havia sentido dor naquele lugar, até o pós-consulta.

Ao contar para a mãe, iniciou-se um choro discreto partindo da mais velha. A filha tentou inutilmente acalmá-la. Só sossegariam (ou não) depois do ecocardiograma, o qual pôde ser marcado para o dia seguinte, devido à insistência da matriarca perante a secretária da clínica.

O amanhã demorou mais que os outros dias para chegar, mas chegou. Chegou também a hora do exame e junto dele a secretária pedindo que a menina ficasse sem metade dos seios, se livrando do sutiã de enchimento.

A médica que fazia o “ultra-som do coração†entrou na sala. Mostrou para a menina o coração em branco e preto, na tela de um monitor. Com uma destreza incrível, a examinadora foi nomeando as partes componentes daquele volume amorfo na tela; parecido com um filme antigo. O som do coração também foi ouvido. A paciente pensou consigo mesma que acaso tivesse alguma perícia para música, faria uma com aquela batida.

Decorridos alguns minutos, ouviu-se um novo som. A voz doce da médica falava com entusiasmo:

– Seu coração está ótimo. Você tem um soprinho mínimo, de relevância nenhuma. É brisa no peito!

O sorriso largo se abriu. Ela estava feliz por ter sido cardiopata durante um dia. Decidiu desmarcar as outras consultas. Jurou para si mesma que só voltaria a procurar um médico quando a dor fosse real. Programação para o resto da greve: jogar sinuca.

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Nara Mourão adora um sorriso largo, mas garante que o dela não passa de 32 dentes.
narachamou@yahoo.com.br

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