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Papel Picotado
Nian Pissolati
Escrevendo, quando em vez.

Prelúdio

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Primeiro era o cheiro. O cheiro forte, quase primitivo de madeira de lei, invasivo, que com o passar dos minutos, ganhava força a cada folha minha que caía. As folhas que cobriam cuidadosamente cada canto de minha fragilidade. E o jogo manso de recobrir-me com aquelas já derramadas no chão, enquanto outras tantas insistiam em cair, traziam à respiração o descompasso. O peso do ar, que a cada tragada, fazia do exercício da respiração um linguajar. Nosso linguajar. E o meio-encher de pulmões se tornava o torpor que embebia meus sentidos. E prosseguindo o ritual mágico que eram nossos encontros, ele fazia questão de ressaltar sua outra arma, o silêncio. O não-falar que lhe servia para denunciar que minhas folhas, já no chão, não eram mais capazes de tampar nada. E para que minha fragilidade recebesse o ar novo do desejo – a cada dia um novo ar – era necessário manter nosso mutismo. Como fala apenas meu arfar. Só quando então seu cheiro-madeira tornava-se meu respirar, quando minha fala se tornava seu cheiro, era quase conscientemente que meu corpo começava sua dança trêmula. E cada pêlo meu que se eriçava era uma antena a mais que captava seu cheiro, que aos poucos temperava minha pele. Nessa hora minha fala-madeira se transformava no quase-grito, derramando em seus ouvidos pequenas porções de mel. E, como resposta, sua fala, ainda mais muda, me jogava na cara meu próprio cheiro, que nascia nele. E então, nas longas e sinuosas estradas de meu corpo, surgia-me o suor – ainda sem o toque. E talvez para me confundir ele cuidadosamente percorria meus caminhos molhados com o roçar de dedos singelo, que mais uma vez era a fonte da dança do meu corpo – dessa vez incontrolável. Mas ainda não era a hora de segurar-me. Minhas estradas eram então desenhadas por dedos antes ásperos, que começavam seu caminho nos nódulos dos dedos dos meus pés, passando pelas carnes de minhas coxas, terminando por construir mini-círculos em meu ventre. E adiando ao máximo o encontro com meus seios, ou até mesmo com minha nuca, ele mergulhava suas mãos em meus cabelos, já esperando meu entreabrir de boca. E minha única alternativa era entregar-lhe meu hálito madeira. Sua-minha-fala-madeira. E antes que ele realmente me segurasse e me conduzisse para nosso mundo, eu enfim me calava, a espera da hora exata de banhar-lhe com minha arma sempre tão escondida: meu cheiro-flor. Mas isso viria depois. Quando o toque então fosse permitido, na meia-luz de seu quarto.

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nianpl@gmail.com

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