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A quem a letra não urge? Considerando essa necessidade da escrita inerente a muitos, cá estão algumas letras que buscam cores como tratamento para dores diversas. |
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Pelo Ralo
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Cansado de escrever sobre tantas dores, das mais diversas.
Olhava para baixo e via tudo tudo caindo, tudo tudo indo embora ... pelo ralo. Ralo abaixo iam seus sonhos, seus dias bonitos. Queria parar com tanta água. Mas eram muitas. Muitas águas salgadas, e não se trata de suor – antes fosse.
Que dormisse então. Que se deitasse e encontrasse um pouco de tranqüilidade no sono. Um pouco fora de si, ou dentro de outra parte de si. Descobria que era assim que começava a continuar. Seguir com a vida lidando com tantas perdas, tantas idas embora.
- O que o senhor deseja comer de sobremesa hoje? Doce de leite em pedaços?
Estava em seus braços alguns dias antes da chuva. Antes não gostava de doce e tinha muito medo de pedaços.
Agora estava partido ao meio. Metade de si ficara entre as palavras mal pronunciadas, mal pensadas. Queria ser ouvido, mas ao gritar, apenas recebeu o desprezo. E isso o perturbou durante algumas horas de insônia na cama de marfim um pouco grande para estar vazia.
O mordomo pediu que o senhor dissesse o que gostaria de comer no dia seguinte, mas o senhor não responderia hoje, tinha resolvido parar de falar, deixou as palavras escorrerem pelo ralo desde a última vez que se barbeara.
E mesmo a sua barba o incomodava, o cabelo começava a cair aos poucos, olhou-se com um certo tempo de milésimos de segundos e viu que continuava o mesmo menino de alguns anos atrás. O mesmo menino que colocava tachinha na cadeira das meninas só para ver a cara delas de tristeza e raiva. O mesmo rapaz que matava borboletas com cinzas de cigarro. Agora quem estava cinza era ele. Cinza seu cabelo, cinzas suas olheiras, e seu corpo, mui pálido. Mas sentia, ainda assim, a ânsia amarela de gritar.
Pensava no outro que lhe era distante. Meninos da Rocinha, poderia ajudá-los de alguma maneira? Abriu a gaveta, tirou algumas notas azuis, colocou no envelope, escreveu algo e chamou o mordomo, por favor, envie isto amanhã para esse endereço.
Sim senhor, era isso que o mordomo responderia, ele pensou antes que o mordomo pronunciasse essas palavras e antes mesmo que ele dissesse alguma coisa, hoje não diria.
Agora ele olhava para o seu escritório repleto de sabedoria, sim, ele se sentia muito esperto, por mais que fosse, na verdade, um senhor vazio. Abriu a gaveta e observou algumas fotografias de mulheres passadas, nenhuma suportou sua presença, quedara-se sozinho, ele e o mordomo que era na verdade a sua sombra.
-- Camilla Felicori gosta muito de cores. camilla.felicori@gmail.com
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