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A quem a letra não urge? Considerando essa necessidade da escrita inerente a muitos, cá estão algumas letras que buscam cores como tratamento para dores diversas. |
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OlÃvia
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Todas as crianças se alvoroçavam quando aos domingos o relógio de parede de vó Isaura batia às seis horas da tarde. Era esse o momento de tio Ribas chegar com seus bonecos, sempre tirando sorrisos das bocas dos mais sérios de nossos familiares. Seus bonecos coloridos alegravam a tradicional reunião familiar.
Sempre depois do almoço, após brincar com as primas de todas as brincadeiras legais que conhecÃamos, sentávamos na varanda, entediadas, olhando para o cuco que parecia mexer tão devagar que um dia pararia. E esse dia seria triste porque nele o tio Ribas não chegaria e tudo ficaria seco e sem cor.
Tudo isso porque o tio Ribas era ventrÃloquo. De tanto gostar de circo um dia ele foi embora junto a um deles e quando voltou, anos depois, trouxe consigo a alegria leve dos artistas circenses através de seus bonecos.
Todos os domingos eu olhava vislumbrada para seus bonecos e tentava entender de onde saÃam aquelas vozes, mas não conseguia descobrir o segredo. Sentia vontade de perguntar a ele como era capaz de fazer aquela mágica toda, mas não o fazia. No fundo eu bem sabia que, no dia em que descobrisse, a magia se perderia e os entardeceres de domingo voltariam a ser acinzentados como o eram nos anos nos quais tio Ribas esteve ausente.
A magia era só dele, e ela me enchia de cores, deixando-me com uma vontade imensa, sempre que ele ia embora, de expressar minha alegria além de um sorriso. Por isso eu cantava, cantava, com toda a força que minha voz era capaz, sem técnica ou afinação. E assim eram meus domingos, brilhantes após as seis da tarde até a noite chegar por completo e com ela o silêncio da ida embora dos bonecos e com ele minha vontade insaciável de cantar.
E durante minha vida o que eu fiz foi cantar, logo eu, que não entendo nada de palavras, sempre cantei letras trocadas, sempre dancei fora do ritmo, mas cantei, mas dancei, mas vi a vida tão colorida e bela que chegaria a afirmar ter vivido das vidas, a mais bela que conheci.
Eu precisava cantar, e, às vezes, quando via-me desafinar, insistia, não parava jamais, não para satisfazer uma vontade, mas para suprir uma necessidade. Cantar transformou-se para mim em algo tão essencial quanto respirar.
E hoje o essencial é que daqueles domingos guardo na memória os sorrisos e dos cantares, a magia. Mas não canto mais, também por necessidade. Minha voz perdeu-se agora que sei que nenhum boneco de tio Ribas voltará a falar.
-- Camilla Felicori gosta muito de cores. camilla.felicori@gmail.com
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