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Amimurga Letra
Camilla Felicori
A quem a letra não urge? Considerando essa necessidade da escrita inerente a muitos, cá estão algumas letras que buscam cores como tratamento para dores diversas.

Carta de Aniversário

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Ninguém escreveu aquela carta que ele tantas vezes citou em seus diálogos com Mário. Claro que nunca terminou de escrever uma carta em toda sua vida.

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Ninguém escreveu aquela carta que ele tantas vezes citou em seus diálogos com Mário. Claro que nunca terminou de escrever uma carta em toda sua vida. Vívian morava perto da casa dele e tinha medo de mariposas. Era esposa de seu melhor amigo. Gostava de chocolate com estrelas. Lascívia era para ela a pior característica que alguém poderia ter. Terminou o seu dia muito mal hoje. Jejum, sem voz, sem força. Sapato preto que machucava o pé. Pesada maleta com papéis coloridos. Dos amigos, gostava mais daqueles que se lembravam dela. Lapidava amizades com o máximo de cuidado possível. Velava sonhos junto a amores e cores e receitas de comida. Damasco era sua fruta preferida. Dava até água na boca só de imaginar.

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Faz tempos que não pego a caneta esferográfica para escrever uma carta como essa. É verdade, o computador ajuda muito, mas às vezes chego a esquecer qual é a forma de minha letra. Mas hoje vou escrever tudo o que preciso escrever, preciso demais de poder segurar as letras, preciso que elas tenham alguma vida, pelo menos hoje.

Por isso escolhi o papel mais bonito que encontrei no meu quarto; dentre tantos outros, alguns amarelados, outros sujos, alguns rascunhos, alguns dobrados, amassados, sujos de café, chá ou inclusive molho de tomate, da última macarronada que fiz no último feriado e comi no meu quarto: como não consigo não me sujar quando como molho de tomate. Mas entre tantos papéis que não são dignos de apresentação para ti, escolho o mais bonito de todos, azul clarinho. Para combinar, escolhi caneta azul marinho bem forte.

Acho que agora posso começar. Gosto de fazer prelúdios assim, não sei porque razão, ou se sei não quero te contar agora. Mas isso não importa.

Importa que faz tempos que estou com saudades de você. O meu quarto está demasiado vazio só com a minha presença. Minha presença não consegue encher nem sequer o meu quarto. A última vez que você veio aqui foi lindo, tomamos um vinho que não estava bom, e um macarrão com um exagero de pimenta no molho. Mas não ficamos com fome de comida e ficamos bêbados. Naquela noite não fazia nem calor nem frio. Fazia amor. Só isso.

Te escrevo porque hoje eu preciso ficar sozinha. Mas ao mesmo tempo preciso de minha memória para dar conta de satisfazer essa minha necessidade. Porque nela não estou só. Estou cheia de pessoas ao meu redor. E eu preciso delas hoje, apenas na minha memória. Perto agora, não. Tenho muita dor de garganta e muita raiva de sorrisos e bailes onde tantos dançam com tanto cuidado. Cansei de dançar com outros que não o meu amor, isto é, você.

Hoje eu não estou para ninguém. Nem para mim eu diria. E como se não bastasse estou atolada de trabalho, acredita? Puxa vida essa coisa de um trabalho desses, tão quieto, quero sair correr fazer mil coisas, não ficar parada parada fazendo isso que faço com cuidado e cuidado, não seja igual a mim. Hoje sou péssimo exemplo, carinho.

Onde você está agora? Espero que esteja em um lugar bonito e tranqüilo ou então divertido e cheio de pessoas conhecidas que gostam de você e te amam. Mas na verdade essa última possibilidade não cabe. Você não tem pessoas que dizem que te amam. Nem eu. Alguém terá? Nesses tempos de computador as pessoas pararam de usar a palavra amor. Acho que é um problema inclusive com a língua portuguesa. As pessoas gostam, mas não amam. Nem me lembro quando foi a última vez que usei essa palavra, antes de escrevê-la agora mesmo.

Acho que foi na última vez que você veio aqui, se lembra? ... Não vai se lembrar. Me lembro agora que eu quis dizer mas não disse. Onde você está agora? Eu estou em casa. Fiz massa caseira com molho de tomate com um toque de pimenta e algumas folhas de orégano da horta que nós plantamos. Fazia frio naquele dia, mas sujamos nossos dedos de terra e plantamos temperos para nossa comida, antes insossa. Onde você está agora? Não sei se adianta perguntar. Como sempre já me cansei de escrever e me colocar, assim, tão transparente no papel azul clarinho. Por ora chega, depois termino.

Beijos e Sorte,

Vívian.

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Camilla Felicori gosta muito de cores.
camilla.felicori@gmail.com

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