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Amimurga Letra
Camilla Felicori
A quem a letra não urge? Considerando essa necessidade da escrita inerente a muitos, cá estão algumas letras que buscam cores como tratamento para dores diversas.

Entre Abismos e Desertos

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Eu nada consegui dizer quando ela chegou. Disfarçava minha ansiedade da espera tecendo uma pulseira verde, sentado ao lado de um jovem que escrevia qualquer coisa em um papel cinza.

Ela chegou sem nada dizer, olhou para ele, para a pulseira, e por último para mim, sem mover um músculo da face. Ele parou de escrever para olhar para ela, linda de lilás, percebeu o nosso silêncio e afastou-se um pouco de mim, cedendo lugar para ela. Ela se sentou sem pronunciar uma só palavra e sem me olhar. Perto, de uma loja de discos, começou a tocar Cartola quando ela se sentou, um belo samba que outrora nos unira e agora aumentava o deserto de nosso silêncio. Ficamos um tempo ali parados, enquanto eu tentava imaginar sobre o que o menino escrevia, quem sabe sobre o que se passava na mente dela, ah, como podia, e assim quando se distraísse eu pegaria suas folhas e leria ela toda, e talvez saberia qual palavra dizer para que me olhasse ou me ouvisse. Desde que essa idéia passou por minha mente, ele não parou um só segundo de escrever, e nesse tempo de silêncio de nós três quem se ausentou em pensamentos na verdade fui eu; ao voltar lhe perguntei as horas – a ela – me respondeu e começou a contar moedas que trazia no bolso, preciso ir ao banheiro, disse olhando para frente e não para mim, é cinqüenta centavos, acho que fica daqui a quatro quarteirões, sim, eu disse, não é tão perto, ela se levantou e foi-se embora para o lado direito em direção à Praça Sete. O silêncio dela nos abandonou. Mas eu não conseguia mais ficar calado, não conseguiria mais me concentrar na pulseira.


- Qual é o assunto? – Perguntei a ele sem muita convicção e sem esperar uma resposta; eu não esperava mais respostas desde que a conhecera. Ele respondeu que era sobre uma mulher que vestia um vestido verde e usava uma pulseira lilás tecida a mão e que gostava tanto de falar que seu amante não sabia nunca o que dizer e com isso eles não se comunicavam, como se construísse entre eles um deserto ou um abismo. Trabalho de escola, me explicou, tenho tanta dificuldade para escrever, mas não posso escapar de um conto presenteado pelas contingências que me cercam, obrigado pela ajuda, não gostei do conto, mas terminei meu trabalho, acho.


--- Claro.


O que mais eu poderia dizer a ele, que realmente escrevia sobre ela. Ela era o que diminuía o abismo entre nós dois. Então eu lhe falei dela, de como era difícil compreender o outro e importante que alguém tentasse transformar em palavras o deserto de nosso silêncio. Era isso o que ele tinha feito ao fazer de nós seu conto. Então eu lhe falei de um lugar onde nos sentiríamos no deserto. Um deserto sem palavras. Ele sorriu. Sua gratidão me confortou. Partimos em silêncio. Ele para a direita e eu para a esquerda. Ele tinha mais chances de se encontrar com ela. Caso a encontrasse seu conto perderia o sentido se ela dissesse algo para ele, talvez. Por outro lado eu poderia continuar desencontrando-me com ela sempre, me acostumei a abismos e desertos.

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Camilla Felicori gosta muito de cores.
camilla.felicori@gmail.com

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