Um deus em quadrinhos


Nossa avaliação

“Thor” é o próximo filme de super-herói a ganhar a tela grande, seguindo a fórmula inaugurada por “Homem de Ferro”: uma dose salutar de humor e ação, mantendo um grau de fidelidade com a maneira como o personagem foi representado em décadas de histórias em quadrinhos. Mas assim como o cabeça-de-lata antes do lançamento de seu longa, Thor é um herói praticamente desconhecido do público em geral. Todo mundo já ouviu falar de Batman, Superman, Homem-Aranha… Mas quem é esse cara com o martelo?

No Universo Marvel, ou seja, no mundo ficcional compartilhado pelos astros de diversas HQs publicadas pela editora americana – que abrangem não só o aracnídeo, como os X-Men, o Hulk, o Justiceiro, o Demolidor, a Elektra e até Blade, o caçador de vampiros (só pra citar os que já estrelaram adaptações para o cinema) –, Thor é um dos “três grandes”. Essa tríade inclui o Homem de Ferro e o Capitão América (cujo filme também está para ser lançado), e tem um significado simbólico. O editor Alejandro Arbona explica: “Thor representa força e poder sem paralelos, aplicados nos espírito da benevolência, para defender aqueles que não são fortes. Steve Rogers [o Capitão] corporifica a estratégia, a astúcia e um ideal de liderança que inspira a todos que comanda. E o Homem de Ferro? Tony Stark inventa e cria.”

A Asgard dos quadrinhos

É comum que se faça comparações dos super-heróis, inventados no século XX, com os deuses e heróis de mitologias diversas. O Superman, por exemplo, incorpora a força de Hércules e a invulnerabilidade de Aquiles (mas também seu “calcanhar”, na forma da kryptonita). Sua origem, como um bebê enviado para a Terra em um foguete, evoca a história de Moisés, colocado no rio em um cesto de vime. Thor, no entanto, não é uma metáfora moderna para um personagem da mitologia. Ele é, literalmente, um deus.

Na mitologia nórdica, Thor é uma divindade que carrega um martelo e é identificado com o trovão, o relâmpago e a tempestade, além da força, destruição, fertilidade e a proteção da humanidade. Pelos romanos, ele foi comparado a Júpiter, o líder do panteão do antigo império. Entre os germânicos, Thor era na verdade o filho da divindade maior, Odin. A relação problemática do deus do trovão com seu pai autoritário é um elemento muito explorado nas HQs (e agora, no filme).

Thor não é o único deus ou herói da mitologia antiga a figurar em histórias de super-heróis. Ao contrário de figuras como Hércules, no entanto, ele não é apenas um imortal que, entediado com sua vida no Olimpo, Asgard ou reino mítico equivalente, decide percorrer o mundo dos humanos em busca de aventuras. Podemos dizer que relação do deus do trovão com os humanos é muito mais complexa…

A primeira aparição de Thor (o personagem Marvel, não o deus mitológico) se dá em “Journey Into Mystery #83”, publicada em agosto de 1962 (atenção para o easter egg no filme “Thor”, em que um outdoor faz referência à revista). O personagem foi criado por Stan Lee, mas as primeiras histórias foram escritas por seu irmão, Larry Lieber, e desenhadas por Jack Kirby. Lee descreve a lógica por trás da criação de Thor: “Como você cria alguém mais forte que a pessoa mais forte? Finalmente me ocorreu: não faça ele humano – faça-o um deus. Decidi que os leitores já estavam bastante familiarizados com os deuses gregos e romanos. Poderia ser divertido mergulhar nas velhas lendas nórdicas… Além disso, eu imaginava os deuses nórdicos parecendo os vikings antigos, com longas barbas, capacetes com chifres, e porretes de batalha.”

O personagem estreou na história “O poderoso Thor e os homens de pedra de Saturno” como o doutor Donald Blake, um médico americano viajando em férias na Noruega, que se depara com os alienígenas do título se preparando para conquistar a Terra. Deficiente físico, Blake tenta fugir dos aliens pedregosos, mas acaba perdendo sua bengala. O médico tenta escapar por um túnel de pedra, mas a outra saída está bloqueada por uma grande rocha. Ele então encontra uma câmara secreta, contendo um antigo cajado de madeira. Frustrado por não conseguir mover a pedra, ele a golpeia com o cajado e se transforma, com um clarão de relâmpago, no “Poderoso Thor”. O velho cajado se torna o mítico martelo Mjolnir, contendo a inscrição “Aquele que empunhar este martelo, se digno for, possuirá o poder de Thor”.

Blake logo descobre as “regras” de uso do martelo: o Mjolinr é indestrutível e pode ser arremessado com grande força, retornando magicamente para seu dono; batendo o cabo do martelo no chão, ele pode comandar chuvas e tempestades; e se o “hospedeiro” ficar mais de 60 segundos longe do martelo, reverte automaticamente à sua forma humana.

Nas edições seguintes conhecemos um pouco mais sobre o Dr. Blake, um médico de sucesso. Tímido demais para declarar seu amor pela enfermeira Jane Foster, ele pensa que ela jamais se casaria com um “aleijado”. Entretanto, sem que ele saiba, Jane também o ama secretamente, mas o considera rígido e profissional demais para entrar em um relacionamento com uma colega. A situação acaba se tornando um triângulo amoroso ao incluir Thor, “lindo” e “másculo”, um grande contraste ao covarde Blake, que convenientemente sempre desaparece durante situações de perigo.

A relação entre Blake e Thor não é clara no início. Será Blake como a criança Billy Batson, que se transforma no Capitão Marvel ao pronunciar uma palavra mágica, mas mantém suas memórias intactas? Blake permanece com suas memórias humanas quando se transforma em Thor, mas parece ganhar algo mais. Os demais deuses asgardianos, incluindo seu meio-irmão e arquiinimigo Loki (o deus da mentira e da falsidade), o tratam como se ele fosse o verdadeiro deus do trovão, e não um mero humano transformado. Não sabemos se Blake apenas finge, baseado em seu conhecimento de mitologia, ou se tem as memórias do deus. Mas o fato é que ele “atua” diante dos seus pares como se fosse um deles.

O trapaceiro - e chifrudo - Loki

Com o sucesso do personagem, a revista “Journey Into Mystery” eventualmente foi rebatizada de “The Mighty Thor”, e teve nomes lendários em seu rol de autores, como os artistas Neal Adams e John Buscema e os roteiristas Gerry Conway, Len Wein e Roy Thomas. Foi este último que adicionou mais elementos da mitologia nórdica à estória do herói. Após sua saída, Walt Simonson assumiu os roteiros (e, ocasionalmente, também a arte), gerando uma das fases mais aclamadas do título.

Durante esse tempo ficou estabelecido que Odin, visando ensinar humildade ao seu filho, o aprisionou no corpo do humano Blake sem as memórias de sua vida em Asgard, o reino dos deuses nórdicos. Exilado na Terra, ele fica constantemente exposto às tramoias de Loki, que acaba sendo responsável pelo surgimento de alguns dos principais inimigos do deus do trovão, como o poderoso Homem-Absorvente (cujo nome tem uma tradução bastante infeliz). Loki acaba sendo também responsável, inadvertidamente, por reunir pela primeira vez o grupo de heróis que acabaria sendo conhecido como os Vingadores, do qual Thor foi um membro fundador e até hoje é tido como um dos alicerces (o filme dos “Vingadores” está programado para estrear no ano que vem).

O Thor de Neal Adams

A partir da década de 1980, começou-se a explorar a possibilidade de o mjolnir ser empunhado por outros que não o Dr. Blake. Simonson descreve como a ideia primeiro lhe ocorreu: “Uma das coisas legais a respeito de Thor era o encantamento e a inscrição original no Mjolnir. Então pensei, bem, significa que outra pessoa pode pegar esse martelo e ganhar esse poder, se for digno! Desde então, outros personagens importantes, favoritos dos leitores, levantaram o martelo, como o Capitão América, Superman, etc. Mas naquele ponto, ninguém jamais havia pego o martelo.”

Simonson então introduziu Bill Raio Beta, um alienígena de visual esquisitão e assustador que, por ser puro de coração, não apenas conseguiu erguer e usar o Mjolnir, como eventualmente ganhou seu próprio martelo, feito pelo próprio Odin à imagem da arma original de Thor. Bill acabou se tornando ele próprio um personagem adorado pelos fãs, aparecendo aqui e ali durante os anos. Hoje ele é um dos integrantes da equipe “Os Aniquiladores”, astros da revista americana de mesmo nome.

Bill Raio Beta

A partir daí, o Mjolnir foi passando de mão em mão. Na década de 1990, Thor teve dois outros “hospedeiros”. O primeiro foi o arquiteto Eric Masterson. Ferido mortalmente por culpa (indireta) do deus do trovão, Eric é salvo por Odin, que decide fundir seu filho com o humano para lhe dar mais uma lição. Nessa época o herói adotaria um visual barbudo, ficando mais semelhante ao seu alter ego terreno. Mais tarde os dois seriam novamente separados, mas Eric ficaria com os poderes de Thor e se tornaria o herói Thunderstrike. No final da década, Thor foi novamente mesclado a um humano, desta vez o paramédico Jake Olson, numa fase que durou pouco tempo e é hoje lembrada por poucos fãs.

O herói também enfrentou seus momentos de crise. Sua fase mais negra talvez tenha sido aquela em que ele adotou um novo traje, com um design pavoroso que tem como culpado um brasileiro, o desenhista Mike Deodato. O novo uniforme tinha de tudo: correias cheias de bolsos (como era moda na época), uma corrente pregada ao Mjolnir, ombreiras, e a infame meia-camisa que deixava a barriga de tanquinho do deus do trovão de fora.

o Thor de Mike Deodato...

E como é costume dos super-heróis, ele bateu as botas em múltiplas ocasiões, das quais duas foram mais marcantes. A primeira foi durante o combate contra o Massacre, quando vários dos heróis Marvel aparentemente se sacrificaram para derrotar o vilão, e tiveram suas revistas zeradas na linha “Heróis Renascem”. Na prática, o que ocorreu foi uma tentativa da editora revitalizar alguns dos seus personagens “terceirizando” a produção das suas revistas para profissionais da Image, que estavam com a bola toda nos anos 1990. O resultado foi um leve aumento nas vendas e uma mancha eternamente indelével na biografia do personagem. Outra “morte” do deus foi durante o Ragnarok (sabe o fim do mundo na mitologia nórdica? Pois é), quando todos os asgadianos foram dessa para uma melhor (supostamente, o Valhala).

Foi o conceituado roteirista J. Michael Straczinski (criador de “Babylon 5” e roteirista de “A Troca”) que trouxe os deuses nórdicos de volta à vida e à Terra. Essa fase não apenas revigorou o personagem, como trouxe alguns elementos que foram aproveitados no filme. Um deles é a cota de malha que faz parte do novo visual do deus do trovão. Outro seria a queda do Mjolnir no deserto, gerando um suspense sobre quem seria capaz de erguê-lo, em uma trama que evoca a estória da espada Excalibur, presa na pedra.

É evidente que um personagem com quase 50 anos de publicação tem uma história não apenas rica, como extremamente convoluta. Alguns elementos permanecem fixos: o martelo encantado com a inscrição, o estilo heavy metal, o conflito entre pai e filho. A partir da próxima sexta, dia 29, os fãs poderão conferir se o diretor Kenneth Branagh e sua equipe conseguiram preservar essa essência na transição para a tela grande.

E o Thor de J. Michael Straczinski

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5 respostas para “Um deus em quadrinhos”

  1. Thor não é o único deus a figurar nos quadrinhos, além dele temos Hercules, Athena, Ares, Balder o bravo tem sua própria revista, se não me engano os três guerreiros também terão sua revista propria. Se não me engano morpheus, o sonho dos perpertuos de sandman também é um deus de uma cultura antiga, e na propria revista de sandman diversos deuses de várias culturas aparecem para disputar a posse do inferno. A revista Lucifer que fala sobre o personagem homonimo também fala sobre os anjos e yahweh como o deus católico é chamado em hebraico. Thor não era um dos meus favoritos, até eu ler a trilogia eras do trovão, reinado de sangue e thor guerreiro.

  2. Sim, Luciano! De fato, nós mencionamos no artigo que ele não é o único deus a virar super-herói.

    Em relação ao Sandman, na verdade o personagem é original, mas supostamente encarna aspectos de várias divindades relacionadas aos sonhos. Morfeu é o nome do seu equivalente na mitologia grega, e parte da história do personagem é inspirada no Morpheus mitológico, principalmente a estória do seu filho, Orfeu.

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