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Banquete de Restos

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Pílula Pop: O que te atrai no documentário?

João Moreira Salles: O que eu gosto no gênero documentário é a ambigüidade. As opiniões a respeito do Lula, após o filme, em uma situação ideal, seriam diferentes. Tem um documentarista carioca, o Eduardo Escorel, que diz que os cineastas fazem documentário porque eles querem ser testemunhas dos acontecimentos. A campanha do Lula, ganhando ou perdendo, era um momento histórico na vida social brasileira. Eu queria registrar isso. O filme é um documento histórico que permite análises diversas e eu acho que isso é o importante.

Pílula Pop: Como surgiu a idéia de fazer um documentário sobre os bastidores da campanha do Lula?

João Moreira Salles: Não foi decidido de antemão. Fiz o filme pensando em falar sobre tudo: campanha, comício, passeata, além dos bastidores; Mas ao final da produção, com mais de 240 horas brutas de filmagem, o documentário não tinha uma unidade. E, depois, comício é uma coisa incrivelmente chata. Eu podia ter feito uma edição tola, mostrando que ele repetia a mesma coisa em todos eles. Mas eu não quis fazer isso, mostrar o que todo mundo já tinha visto. Foi na montagem que eu decidi usar somente as imagens dos bastidores.

Pílula Pop: Então, como era seu roteiro antes das filmagens?

João Moreira Salles: Meu roteiro antes da produção era uma disciplina: tentar estar o máximo ao lado do Lula, durante os 30 dias que antecederam as eleições. Simplesmente isso. O roteiro do filme em si foi feito na montagem.

Pílula Pop: E de onde veio o título, “Entreatosâ€?

João Moreira Salles: Acho que o documentário não deve ser um registro do mundo, ele deve ser uma experiência do mundo. Por isso, os entreatos. Eles potencializam a experiência vivida. Esses entreatos ressaltam aquele momento histórico, através da importância desses restos que não são conhecidos. O filme é um banquete de restos.

Pílula Pop: A opção pela câmera mais solta, perdendo o apuro estético da imagem, não te incomodou?

João Moreira Salles: Acredito que o filme não poderia ser feito de outra forma. Aquela câmera no avião era algo extremamente incômodo para o Lula e todos que estavam nele. Nos outros lugares também, eu estava invadindo um espaço restrito, não podia ficar mexendo muito a câmera, mudando de lugar. O filme só poderia ser feito com a câmera digital e com aqueles problemas no áudio, devido ao microfone embutido. São conseqüências. Uma 35 mm naquele avião, por exemplo, é impensável.

Pílula Pop: E como você conseguiu tamanho acesso à intimidade da campanha?

João Moreira Salles: Quem autorizou as filmagens foi o Lula. Sozinho e soberano. Foi isso que permitiu que o filme fosse realizado da maneira que foi. O acesso que eu tive foi muito grande. Nunca tiveram esse tipo de acesso antes. Por isso, a minha responsabilidade também era muito grande. Porque ninguém é santo, ninguém resiste 24 horas por dia. Nem o Lula. Eu gravei coisas que ninguém nunca gravou. O Duda {Mendonça} dizendo pro Lula fazer isso, dizer aquilo. Se eu usasse essas imagens, iria acabar aparecendo na campanha política adversária e eu não queria isso.

Pílula Pop: Como você lidou, na edição, com a atuação e o carisma do Lula frente à câmera?

João Moreira Salles: O Lula está encenando seu teatro e é um teatro ótimo, fascinante. Eu não dou uma conotação negativa à palavra teatro: todos nós encenamos o tempo todo. Quando o Lula, em determinado momento, diz que quer ficar sozinho, é mentira, porque se ele quisesse, ficava. O Lula precisa de platéia, de um público. Acho que, às vezes, ele esquecia sim da câmera. Ela não está encenando para ela, mas para os seus amigos, para quem está no avião. E eu tenho a impressão de que, por vezes, no documentário, a encenação é melhor que a transparência, que a pretensa autenticidade. O Coutinho sabe disso melhor que eu.

Pílula Pop: E a relação do filme com o marketing político?

João Moreira Salles: Eu não fiz um filme de denúncia do marketing político, por mais que algumas pessoas pensem assim. Aquela cena do “controle de qualidade†do último debate, por exemplo, foi um momento muito complicado da filmagem. Antes de começar a produção, eu tive algumas discussões com pessoas ligadas ao marketing político e elas disseram que aquele lugar seria o mais difícil de ter acesso. Eu negociei muito e consegui gravar, mas eu sabia que não era bem vindo ali. Eu tinha que me tornar “parte da parede†e tentar fazer com que eles percebessem ao mínimo a minha presença ali.

Pílula Pop: Por que você faz documentário, e não ficção?

João Moreira Salles: A diferença básica entre ficção e documentário é o compromisso ético. Não se pode ser desleal e usar as armas do canalha para atacar o canalha, como acho que o Michael Moore faz. Para mim, o interessante é construir uma narrativa que se torna a única possível para o filme que você está fazendo. A sedução está na qualidade do filme, do conteúdo.

Pílula Pop: E como foi esse compromisso no trato com o Lula?

João Moreira Salles: Acho que tanto eu quanto o Lula tivemos a consciência de que não estávamos fazendo um Big Brother da vida dele. A cena em que ele fica mais incomodado é quando, no aniversário dele, o Frei Betto começa a fazer uma oração. Ele e eu ficamos constrangidos porque sabíamos que aquilo não precisava ser filmado. Parecia que o Lula não queria usar a fé dele como marketing, tanto que fica de costas para a câmera. O filme é a história das idéias políticas do Lula, contadas num contexto íntimo, que é bem diferente do que elas seriam, se contadas de um palanque. Exemplo perfeito disso é a cena no avião, em que ele fala do Sarney, do MST e do Walesa. Ele não falaria daqueles temas, daquela forma, em nenhum outro lugar.


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