Todo mundo, em algum momento da vida, tem que passar por uma entrevista de emprego, a não ser que seja um à toa ou, não sei, o filho do Eike Batista – o que dá no mesmo, na verdade. Os manuais para esse momento crítico da vida (se você está sentado do lado pedinte da mesa) recomendam ao contratante a fatídica pergunta: “Qual o seu defeito?”
Os mais espertinhos sempre têm uma resposta pronta pra essa situação: “Sou perfeccionista demais”. Ingênuos, saem de lá achando que serão contratados por tão nobre “defeito”. Como se buscar a perfeição fosse um problema.
Bom, no caso de Kevin Shields, líder do My Bloody Valentine, pode até ser, sob certo ponto de vista. Seu perfeccionismo gerou uma das obras primas da música pop, o disco “Loveless”, de 1991, mas também freou sua banda, que veio adiando o lançamento do sucessor do álbum por todos esses anos. Até agora.
Desde o momento em que nasceu, Shields levou 28 anos para lançar “Loveless”. De lá pra cá, passaram-se mais 22 anos. É quase como se o líder da banda tivesse nascido, crescido e amadurecido de novo. O que nem soa tão absurdo, se pensarmos que “Loveless” representou o nascimento de novos caminhos para o rock alternativo, no começo da década de 1990.
O clássico carregou, ao mesmo tempo, a benção de ser um dos melhores discos de todos os tempos e a maldição de quase ter levado a gravadora Creation Records à falência, já que foi um fracasso comercial. Afinal, convenhamos: não deve ser fácil vender muitos discos num ano que trouxe ao mundo “Nevermind”, “Ten”, “Bandwagonesque” e “Screamadelica”.
Adiamento após adiamento, o terceiro álbum da banda começou a carregar uma enorme pressão não só por suceder o queridinho dos shoegazers – aquela turma que toca olhando para os próprios tênis, tímidos demais para encarar a plateia -, mas também pela expectativa que só aumentava.
Talvez a demora para que Shields saísse de sua toca tenha sido uma mistura de extremo perfeccionismo e medo. Afinal, o risco era grande – bem sabemos como é esperar um disco prometido durante anos a fio e constatar, quando de seu lançamento, que era melhor ele ter ficado na gaveta mesmo (sim, você leu “Chinese Democracy”, do Guns N’ Roses). Mas isso nem importa mais.
Não é toa que dizem que as grandes obras são atemporais. Ouvir “m b v” é apenas mais uma prova disso. O disco é um “Loveless” II, e a impressão que se tem é de como se 1991 fosse hoje, ou que 2013 foi há 22 anos.
O MBV se destacou, lá pelo final dos anos 80, pela habilidade de criar melodias atmosféricas e texturas suaves a partir de ruídos e barulhos que, a princípio, poderiam soar apenas como incômodo sonoro. “Loveless” trazia guitarras que pareciam ter sido jogadas num liquidificador, e a mistura era surpreendentemente bem digerível.
“m b v” leva o ouvinte, novamente, a essa nuvem sonora, uma atmosfera confusa e bela, na qual é fácil se perder nas melodias circulares e hipnotizantes. Shields faz parecer, a cada canção, que está tudo fora do lugar, quando cada elemento está numa bagunça milimetricamente bem calculada.
O disco consegue agregar novos elementos à sonoridade da banda, como no (quase) swing de “New you”, cujo baixo chega a convidar a uns passos de dança. Já “Is this and yes” é space rock, talvez diretamente influenciada por uma época que viu nascer Radiohead e Spiritualized, ainda embriões na época áurea do MBV.
Nada aqui chega a ter a fúria juvenil de uma “Only Shallow” – as músicas de “m b v” são mais calmas e tranquilas. É como se as canções quisessem anestesiar o ouvinte, camuflando sua própria confusão interna e extrema tensão emocional. Essa anestesia, porém, está longe de ser suficiente. Os sentimentos escorrem faixa após faixa, especialmente em rompimentos sutis, mas bem marcados, como no refrão de “She found now” e na guitarra desesperadamente sufocada de “Who sees you”.
A voz de Bilinda Butcher continua, ao mesmo tempo, apaziguadora e inquietante em sua calma. Ela surge como se fosse apenas mais um instrumento, distorcida e misturada em meio ao caos melódico de Shields, como mostram “Only tomorrow” e a envolvente “If I am”.
Enfim, é fácil perceber que o perfeccionismo de Shields vibra a cada acorde, e que esse é seu modus operandi como artista. É o seu jeitinho. “m b v” traz a banda de volta, com propriedade, num ano engarrafado de vários retornos: os novos lançamentos de Bowie, Black Sabbath, The Stone Roses, Justin Timberlake e, mais importante de todos, a volta da formação original do É o Tchan (sim, com a Carla Perez e tudo). Dado o histórico do My Bloody Valentine, é meio inútil ficar ansioso. Mas é, também, quase inevitável perguntar: quando vem o próximo?