Noah (2014) | |
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Direção: Darren Aronofsky Elenco: Russell Crowe, Jennifer Connelly, Ray Winstone, Anthony Hopkins |
Avisado por uma divindade sobre um dilúvio que destruirá a tudo e a todos, um homem deve “construir um barco com uma ponte dupla, devidamente aparelhado e robusto” e a partir daí “embarcará reservas, mobiliário, riquezas, esposas, assim como animais domésticos e selvagens, exemplares de todos os seres vivos, grandes e pequenos, incluindo os pássaros”. Vem a destruição e quando a tempestade passa e a água abaixa, o mundo pode finalmente recomeçar com Atrahasis e sua família… Mas espera ai… Atrahasis?
Sim, este é o herói da mais antiga narrativa que se tem do Dilúvio, o “Poema do Supersábio”, escrito pelos mesopotâmicos em tabuletas cuneiformes cerca de 1.700 anos antes de Cristo. Naquela época, a história – politeísta – parecia servir não apenas para tentar explicar os alagamentos causados pelos rios Tigre e Eufrates, mas era também uma tentativa de dar um sentido à vida, à continuação da espécie humana. Os homens deveriam servir aos deuses, produzindo alimentos para serem ofertados a estes (um objetivo concreto de subsistência dentro de uma sociedade). Mais tarde, o Dilúvio reapareceu em sua forma tão popular hoje em dia, enviado por um deus único que pretende reiniciar a humanidade a partir de Noé e sua barca repleta de animais. Na Bíblia, a dimensão material do sentido da vida (produzir oferendas para não ser destruído) foi substituída pela dimensão moral: os homens não serão destruídos pelo que não produziram, mas por sua corrupção.
Esta longa introdução é apenas para esclarecer como o mito do Dilúvio serve às mais variadas mensagens, de acordo com a época em que se apresenta. Sua riqueza temática é tal que a proposta de destruição seguida de renascimento pode ser reaproveitada de acordo com os mais variados propósitos. E é isso que Darren Aronofsky faz com seu “Noé”.
O filme atualiza o mito com uma preocupação com a depredação da natureza e com o fundamentalismo religioso. O homem corrupto é aquele que desmata e come a carne dos animais, desafiando a criação divina. Mas ao mesmo tempo, aquele que segue cegamente as ordens do criador também desafia a criação, já que violenta seu livre-arbítrio. Aronofsky parece buscar o equilíbrio entre as duas partes para explicar o homem moderno. E para isso ele divide bem seus contos morais de forma distinta: uma primeira centrada no amor à natureza e na crítica ao impulso destrutivo-expansivista (quase industrial) do homem, e uma segunda parte focada na loucura obsessiva de Noé.
As duas são bem diferentes e a segunda metade do longa se sai muito melhor do que a primeira. O início é marcado por um estranhamento: há um cuidado realista não apenas na atuação, figurinos e direção de arte, mas também no uso da violência e do suspense. Mas ao mesmo tempo, o filme abraça o lado fantasioso (bem “Senhor dos Anéis”), com gigantes de pedra saídos de textos apócrifos e certos exageros estilísticos do diretor. Os efeitos digitais às vezes não convencem, e a impressão que se tem é que se assiste a uma fantasia que quer ser uma história real, ou uma história real que quer se vestir de fantasia. Neste sentido, Aronofsky – sendo proposital ou não – compreende bem do que é feito um mito, e as duas faces da história se unem na cena em que o personagem-título explica o surgimento da vida, unindo ao mesmo tempo criacionismo e evolução.
Com todas as suas licenças do Gênese, “Noé” entrega uma sequência de dilúvio espetacular, assumindo-se de vez como ação e aventura, utilizando a destruição para marcar a transição para aquilo que realmente parece interessar aqui: um estudo de personagens isolados dentro de uma arca. A história se torna mais sombria e Russel Crowe deixa claro que seu Noé não é bem um herói. Menos épico do que prometia, e mais fantasioso do que se esperava, o filme funciona na medida em que atualiza uma história milenar para nos fazer refletir sobre os problemas de agora e nos ajudar a perceber um pouco mais os anseios da natureza. A humana, claro.