Tinta Bruta


Nossa avaliação
Hard Paint (2018)
Hard Paint poster Direção: Filipe Matzembacher, Marcio Reolon
Elenco: Shico Menegat, Bruno Fernandes, Guega Peixoto, Sandra Dani


“Tinta Bruta” é um filme, essencialmente, sobre o olhar. O olhar como um gesto e uma ação, com poder de criar, destruir, identificar, dar vida. E acima de tudo, sobre como nos permitimos, e escolhemos, ser vistos hoje – por trás de telas, e filtros do Instagram, e a efemeridade do stories, e a curadoria do Tinder, e o recorte do Grindr.

Porque tudo isso são não apenas máscaras, mas escudos. Armaduras que nos protegem, e atrás das quais nos escondemos. E a tinta neon que o protagonista Pedro (Shico Menegat) usa em suas performances na webcam é apenas mais um desses anteparos de defesa. É uma couraça que, ao mesmo tempo em que pede “olhe para mim”, desvia a atenção e impede que o interlocutor enxergue quem está por baixo daquela performance.

E a grande questão do filme é o que acontece quando abrimos mão desses escudos. Quando deixamos que alguém enxergue a pessoa por trás de todos os mecanismos de defesa – uma pessoa que, muitas vezes, nem nós sabemos quem é. É um ato de extrema vulnerabilidade, e também de extrema coragem, que pode significar morte – e vida.

Pedro tem essas duas experiências. Mas a que os cineastas Filipe Matzembacher e Marcio Reolon (“Beira-mar”) privilegiam, com razão, é a segunda. A história de “Tinta Bruta” começa antes mesmo do início do filme, quando o protagonista é vítima de um desses olhares que desejam matar, e reage atacando – exatamente – o próprio olhar. Mas o longa tem início mesmo quando, em meio às consequências legais por sua (re)ação, ele conhece Leo (Bruno Fernandes), dançarino que copia suas performances na webcam. E é visto, enxergado e identificado por ele, como nunca havia sido antes – sem barreiras, sem escudos, sem a armadura da tinta neon.

A trama do filme consiste em Matzembacher e Reolon retirando, um a um, todos os muros e mecanismos que Pedro erigiu ao seu redor para se proteger: a irmã, Luiza (Guega Peixoto), que parte para Salvador logo no começo; as tintas; a tela; e as próprias paredes do quarto e do seu apartamento. E ao perder todos esses escudos, o protagonista é obrigado gradualmente a enxergar, e aceitar, quem ele realmente é.

O que vem a ser uma das coisas mais difíceis para a grande maioria dos homens gays. Porque, desde pequenos, somos ensinados pelo – olhar dos – outros que quem nós somos é errado: o jeito como você anda, como mexe a mão, como requebra o quadril, como fala, como ri, como dança… E os efeitos claros disso são o pânico e o desconforto na expressão de Menegat toda vez que o protagonista é obrigado a sair de casa. Leva muito tempo para acreditar, e aceitar, que o mundo é um lugar onde podemos, simplesmente, ser. É um ato de resistência.

Não é por acaso que a única forma que Pedro encontra de tentar ser ele mesmo é performando sua sexualidade e sua personalidade protegido por uma tela de computador, por quatro paredes, pela tinta que ressalta-esconde o corpo e pela identidade “Garoto Neon”. Até que ele conhece Leo, cujo olhar enxerga o ser humano por baixo disso tudo e lhe diz pela primeira vez na vida “não há nada de errado com quem você é. Eu te vejo, te enxergo, te aceito e amo quem você é”.

Leo literalmente vê Pedro “nas artes plásticas”, embora eventualmente ele queira mostrar ao amigo-parceiro-namorado que nem precisa delas para isso – que é possível ser ele mesmo sem todo aquele aparato. Uma transição representada na fotografia de Glauco Firpo, que tem um olhar estilizado, voluptuoso, sensual e carinhoso para as performances; e outro mais próximo, íntimo e sóbrio (que naturaliza, sem querer “normalizar”) nas cenas fora do quarto.

Ainda assim, a dupla de cineastas gaúchos sabe da importância e do poder que a arte tem, ao representar esse olhar que ama, que aceita, que identifica e valoriza – e que resiste e rejeita o olhar que mata. E é esse poder, e esse novo olhar, que eles buscam capturar em seu filme.

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