Sexualidade e as prisões da sociedade


Viver em sociedade é viver buscando aceitação. Não por ser um conceito de ego, mas sim porque se não formos aceitos em nosso convívio simplesmente não vivemos. Não ser aceito por ser quem você é dentro da sua casa, ou no local onde estuda, ou no local onde trabalha, em qualquer estabelecimento ou mesmo na rua, é ser jogado à margem simplesmente porque você aproveitou da liberdade de ser você mesmo. Eryk Souza passeia pela ficção-científica para conversar, com poucos, mas significativos diálogos sobre sexualidade e a aceitação na sociedade.

Cyberpunk Afrofuturista

Pomo, de Eryk Souza, vai ao futuro para contar uma história muito atual, principalmente aqui no brasil. A HQ foi publicada em 2020 pela Editora Mino, com o selo Narrativas Periféricas, que publicou histórias não convencionais de artistas que são e que dialogam com a periferia.

Na trama, ambientada em um futuro meio cyberpunk afrofuturista com notáveis referência ao nordeste brasileiro, seguimos a história de um garoto chamado Joabz que encontra um alienígena andrógeno, caído próximo ao vilarejo em que mora. Joabz, que faz parte de uma religião extremista que controla as leis daquele vilarejo, sabe do perigo de levar o alien até lá, mas decide ajudar, mesmo colocando a própria vida em risco.

Religião e sexualidade

Existem alguns contadores de histórias que ficam com receio de tocar em certos assuntos polêmicos para não “perder o público”, ou até consumidores que acham que toda e qualquer história que fala de temas sensíveis é militância. Eryk manda um “não tô nem aí para o que vocês pensam” e junta em Pomo questões sobre sexualidade e extremismo religioso em um único lugar.

Porém, a maneira com que Eryk coloca essas questões conduz o leitor por um caminho mais reflexivo e introspectivos do que de militância. Com os diálogos curtos, é necessário ficar atento a cada cena e cada acontecimento.

Um olho no futuro, com os pés no presente

Muito dessa reflexão parte dos elementos que são apresentados em toda a narrativa. Joabz, humano, sente uma empatia muito grande pelo alienígena, e não apenas pela aparência dele, mas, em cada expressão e olhar do protagonista você consegue perceber que ali tem muito mais do que humanidade. De certa maneira, a sexualidade indefinida do alien é quase como um espelho para Joabz.

Humanidade talvez seja a palavra certa para o equilíbrio de cada metáfora nas páginas de Pomo. Isso porque os habitantes do vilarejo são ciborgues, um híbrido de máquina e carne. Porém, as pessoas não nascem assim e Joabz está prestes a passar elas cirurgias que o transformarão. Ele será máquina. Ele será destroçado e colocado à força na forma que a sociedade impõe.

A sociedade impõe que todos precisa seguir regras. Vestir-se com a maneira que mandam se vestir. Se comportar perante julgamentos autoritários e preconceituosos. Muitas vezes, seguir condutas que estão estabelecidas em um livro escrito há mais de cinco mil anos e que poucos os compreende de verdade. Isso parece o mundo real, não é? Mas é Santa Fé, o vilarejo onde Joabz mora.

O Maquinário, livro que todos leem como uma bíblia, determina diversas condutas, mas também mostra que os alienígenas são monstros horrendos e criaturas que blasfemam contra o criador por mudarem sua carne e despertar a luxúria e desejos profanos nas pessoas.

Mas então, quando Joabz conhece um alien de verdade e se vê no corpo dele, vem o questionamento: quem são os verdadeiros monstros? Quem, na verdade, profana os corpos?

Um paraíso de pessoas más

Muitas vezes, a religião nos apresenta questões que são completamente distantes da humanidade. Para um controle de fiéis, seja com o intuito de ganhar dinheiro, ou para impor uma conduta, esquecem de fazer a caridade. Esquecem do respeito ao próximo, do amor a todas as pessoas, da liberdade de ser feliz. Esquece da brandura, da calma, do perdão. Atributos que são relacionados à espiritualidade, mas que, curiosamente, as religiões teimam em passar longe.

Religiões que impõem regras, com a desculpa serem bíblicas (porém interpretam cada passagem à benefício próprio), onde enclausuram pessoas em gaiolas e as deixam presas no próprio corpo.

Grupos controlam uma turba que se alimenta de preconceitos e ódio, apontando o dedo para seja lá quem for diferente, mas que não enxergam os próprios defeitos e hipocrisias.

Roubam, são corruptos, violentos, segregam, matam (e se não matam diretamente, são responsáveis por uma cadeia de ódio que matam muitas pessoas). E ainda dizem seguir Deus.

Preferem pessoas mortas ao invés da dádiva de praticar o perdão, dizem que bandido bom é bandido morto. Se fecham em cubículos de ideias sem deixar os sonhos e as vontades voarem, e descontam as frustações na liberdade alheia. Querem acreditar em mentiras disparadas em redes sociais e nas palavras de políticos preconceituosos, só porque fomentam o próprio desvio de moral, na desculpa de dizer que é a favor da ordem e da família.

Mas, o mais amedrontador de tudo, se distanciam tanto da humanidade, sem se quer perceberem que estão agindo errado. Fazem com a certeza de que encontraram um paraíso no final dessa jornada.

A arte imita…

Pomo é uma obra delicada, que conta uma história forte, percebida não apenas em sua narrativa, mas nos detalhes.

Uma ficção sim, que bebe muito da estética de séries como Evangelion e Ghost in the Shell, mas que nos coloca no âmago de um problema que enfrentamos no Brasil da vida real de maneira muito direta.

Pomo, em poucas palavras, dá a voz para muitos gritos necessários.

Tico Pedrosa é publicitário, roteirista, escritor, professor e criador de conteúdo. Fã de quadrinho desde sempre. Você pode conferir as ideias dele no instagram e twitter.


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