Os vermes em nossa sociedade


Verme são seres rastejantes e repugnantes. Parasitas que instalam em corpos de seres vivos para consumir os nutrientes ou para se alimentar do corpo em que se encontram. Vermes também crescem no lixo, em carcaças e alimentos podres. Há vários tipos deles, e esses se alastram na biodiversidade ou na sociedade. A autora Kione Ayo, traz uma visão complexa e profunda sobre preconceito e o abismo social em sua HQ que é Para Todos os Tipos de Vermes.

Dentro de vermes

Para Todos os Tipos de Vermes é uma HQ lançada pela Editora Mino com o selo Narrativas Periféricas, onde uniu artistas que são de e que dialogam com a periferia. Kione Ayo traz em sua história uma leitura bem ácida, complexa, porém certeira em seu quadrinho, quando expõem, em um ambiente cheio de metáforas, a organização social que pisa, escraviza e assassina moradores de periferia, principalmente negros.

A história segue dois primos, Anokye e Ékteon. Eles vivem em um futuro em que a sociedade foi praticamente dividia em duas: Os lipídicos, humanos que vivem na superfície do planeta em um mundo onde grande parte da população foi dizimada, principalmente por conta da poluição. E os Intestinais, humanos que moram dentro de vermes gigantes que vivem nas profundezas.

Os lipídicos são praticamente a elite dessa organização social, retratados como brancos de olhos claros vivem suas vidas como a elite de nosso tempo. Com luxo, usando drogas sem serem marginalizados, cheio de preconceitos e teorias da conspiração contra àqueles mais pobres.

E esses mais pobres, são os intestinais. Retratados como negros, que trabalham minerando o interior dos intestinos dos vermes, para coletar insumos e distribuir aos lipídicos. São a escória da sociedade, vistos como marginais, bandidos, sujos, sem nenhuma instrução ou educação.

Anokye e Ékteon são intestinais.

Os que rastejam

Os intestinais, por trabalharem no interior de um ser vivo, um parasita, têm o corpo coberto por fungos. Mas, existe uma doença conhecida como fungicida, uma bactéria que consome os fungos das pessoas, mas ao fazer isso, as matam de maneira quase instantânea.

Anokye perdeu o pai para essa doença. Ékteon perdeu a mãe para essa doença. E ambos perderam a melhor amiga para essa doença.

Com a morte dessa amiga, que os primos começam a pesquisar sobre a origem dessa bactéria até descobrirem uma relação entre ela e o povo da superfície. É então que começa a descortinar o emaranhado de corrupção, preconceito e ideologias que separam os intestinais e os lipídicos.

E entendemos que a divisão social é construída por um meio muito mais ideológicos do que simplesmente destino ou mérito (é sempre bom lembrar que meritocracia não existe).

Paralelos e parasitas

Kione é didática quando ela separa como é a sociedade de Para Todos os Tipos de Vermes, traçando um paralelo quase que maniqueísta no começo de sua obra. Mas a simplicidade para por ai. Em uma HQ de apenas 60 páginas ela começa a edificar conceitos e estruturas sociais tão complexas, que mesmo com o convite de uma leitura rápida por causa de sua arte dinâmica referenciada nos mangás, você precisa segurar o freio e aproveitar diálogo por diálogo, palavra por palavra.

O grande feito de Kione é levar para a HQ questões muito pertinentes em nossa sociedade, sendo muito atual para tudo que estamos vivendo com tanta intensidade desde o ano passado. Então, mesmo flertando com a ficção-cientifica conseguimos entender e absorver a realidade da nossa sociedade, cheia de problemas e preconceito em sua estrutura.

Quando lemos a obra dispostos a entender esse paralelo é que compreendemos que os vermes do título não são apenas as casas dos pobres, mas que, realmente há uma diversidade de tipos de vermes que consomem a vida e a possibilidade de um viver dignamente para todas as pessoas.

Os que são chamados de vermes

Os intestinais são considerados vermes, e não só porque eles são os parasitas vivendo dentro dos vermes, mas por um conceito muito mais forte: os lipídicos (a elite) acham que a sociedade está sendo degenerada pelos intestinais (os pobres), taxando-os de inferiores.

Não preciso ir muito longe com essa linha de raciocínio preconceituosa para dizer como isso acontece aqui, na vida real. No texto sobre a HQ Shin eu citei um ex-chefe que falava que os moradores de ruas eram câncer da sociedade e que, tal como um tumor, precisavam ser arrancados.

Quantos ricos, quantos poderosos que prevalecem, pisam e cospem em quem está em baixo, só porque têm classe social, têm dinheiro? Quantos deles acreditam mesmo que se não tivesse periferia, pobre e pessoas necessitadas, o país, o mundo, seria melhor? Muitos. Parece absurdo e desumano, mas são muitos.

Poderosos que se pudessem arrancar as classes sociais mais baixa à força e afogá-las inteiras no oceano, enquanto passa por cima com sua lancha ou iate, o fariam. Várias e várias vezes, aliás. Mas como não podem (pelo menos não com todos), simplesmente tratam os pobres como invisíveis, teorizando como eles maculam a terra onde pisam. E só não concretizam de uma vez a vontade de extermínio, porque precisam de alguém para limpar suas privadas, fazer suas comidas e trabalhar em suas empresas em troca de um salário miserável.

E mesmo parecendo um absurdo desumano, até mesmo quase irreal, essas pessoas pensam isso com certeza e convicção. São lógicas, juntam A mais B, e quase de maneira acadêmica encaram isso como solução plausível.

É exatamente seguindo essa lógica, que os lipídicos consideram os intestinais vermes, parasitas a serem pisados e exterminados.

Os que são vermes

Porém, se você olhar com atenção, a grande chaga da sociedade da HQ de Kione não são os intestinais. Os grandes vermes que multiplicam e procriam quase tão veloz como um vírus, são os lipídicos. É a elite.

Chaga essa que não está presente só nos quadrinhos. É a elite que retém a maior parte dos recursos e riquezas. Ora, pesquisas apontam que cerca de 2% da população de nosso planeta detém mais de 90% da riqueza. Para facilitar a conta, o pouco menos de 10% do dinheiro que sobrou é divido para 98% da população. E de maneira bem desigual.

Imagina quantos medicamentos poderiam ser comprados para os mais pobres, quanto alimento, quantas casas, como a qualidade de vida poderia ser melhor, se apenas parte desses recursos não estivem na mão de tão poucas pessoas.

Comparar a elite com a periferia é uma realidade tão díspar que olhar para um quadrinho de ficção é perceber que sua história não é fora da realidade. Fora da realidade é esse cenário tão desigual. Como se fosse outra dimensão, outro planeta. Mas que acontece aqui.

Cenouras

“Ah, mas é só você trabalhar duro, estudar e se esforçar que você vai enriquecer”, dizem. Mas é claro que esse pensamento é apenas um conto elitista para enganar pobre. Sabe aquela cenoura amarrada na frente do cavalo para fazê-lo andar?

A elite quer trabalhadores motivados querendo ser ricos, porque isso fará os poderosos enriquecerem cada vez mais, enquanto os pobres tem uma falsa ideia de que estão “crescendo na vida”.

Por isso quando os mais pobres conseguem uma mínima posição de poder, pisam em quem está embaixo. Por isso que governantes se corrompem cada vez mais e mais. É um ciclo em que aquele que está embaixo é ensinado a replicar porque é assim que vivem, e aqueles que nascem privilegiados também replicam, porque vem de berço.

Os intestinais também vivem na promessa de conseguir viver na superfície, por isso aceitam ser tratados como vermes. Terem seus corpos violados, desrespeitados, na esperança de que, se um dia crescer, não vão mais passar por isso. E precisam aceitar a humilhação com humildade, cabeça abaixada, com gratidão e serventia. Porque é isso que os lipídicos querem: ter em quem pisar.

Mas viver na violência cansa. A resposta é sempre mais violência.

Bom, já não sei mais se estou escrevendo sobre a HQ ou sobre o mundo real, a linha é tão tênue. Mas falei pouco, escrevi pouco. Para Todos os Tipos de Vermes tem tanta camada que eu um artigo não é suficiente. Mas vou deixar você ler a HQ e se aprofundar pelo intestino desta sociedade que já há muito tempo está submersa em excremento.

Tico Pedrosa é publicitário, roteirista, escritor, professor e criador de conteúdo. Fã de quadrinho desde sempre. Você pode conferir as ideias dele no instagram e twitter.


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