O cinza nos ferros e concretos


Viver em cidade grande transforma as pessoas. E não estou dizendo sobre as experiências e facilidades de acesso que uma cidade grande proporciona, mas sim, sobre toda a solidão que é viver no meio de tanta gente. Taiyo Matsumoto vai extremamente fundo em sua concepção de cidade mostrando como a ganância, violência e a falta de empatia podem levar ao desespero e ao vazio, mesmo você não sendo o motor dessas más ações. Isso tudo misturado com um bocado de fantasia rica em detalhes do mangá Tekkon Kinkreet.

Ferro e concreto

Tekkon Kinkreet é um mangá de autoria de Taiyo Matsumoto. Originalmente publicado em 1994, a história chegou por aqui em 2001, em três edições pela editora Conrad (com o nome Preto & Branco), foi adaptado em um premiado longa animado em 2004 e em 2018, foi republicado pela Devir em um volume único que carrega o título original japonês.

A história se passa na cidade fictícia de Takara, muito parecida com a Tokyo ou qualquer outra megalópole. Uma cidade de ferro e concreto (o significado das palavras Tekkon Kinkreet) cheia de edifícios, outdoors e criminalidade.

No meio disso, estão duas crianças moradoras de rua, Kuro (preto em japonês) e Shiro (branco em japonês). Eles usam todo o conhecimento que têm da cidade para se aventurar entre becos e prédios, protegendo a cidade e ao mesmo tempo que se protegem. Ainda mais quando a Yakuza, ao lado de um grupo de empresários, quer criar um parque de diversões no meio da cidade apenas visando a possibilidade de lucro, e para isso, tentam limpar Takara dessas pessoas consideradas marginais, como Kuro e Shiro.

Preto e branco

Os nomes dos protagonistas da história acabam revelando o exatamente sobre qual a mensagem Matsumoto quer passar. No meio de tanta coisa acontecendo, o que deixa claro em diversos momentos o teor de fantasia presente na trama, Tekkon Kinkreet faz um exercício narrativo de explicar a dualidade em nós. O bem e o mal. O Yin e o Yang. O Preto e o Branco.

Claro, daria para falar sobre desigualdade, quando vemos empresas tentando lucrar em uma cidade cheia de pessoas pobres. Sobre criminalidade, quando vemos a presença constante de criminosos e mafiosos tanto nas ruas como nas engrenagens das grandes corporações. Também daria para falar sobre o apagamento dos moradores de rua, principalmente as crianças, que precisam se esforçar para ter um prato de comida.  Ou até sobre a violência contida nas grandes cidades e como isso afeta diretamente as gerações mais novas.

Está tudo ali em Tekkon Kinkreet. Todas essas questões são abordadas, mesmo assim, não é o foco. São assuntos que levam a história a ter diversas camadas, e ao chegar no público médio, muitas vezes, confunde com tanta informação e o entendimento da trama pode ser apenas: uma história de ação protagonizada por crianças.

Mas são nas camadas mais internas, mais obscuras na escuridão da história, que vem à luz para quê ela veio.

Yin e Yang

Difícil ler Tekkon Kinkreet e não relacionar Kuro e Shiro com o Yin e Yang. Eles são os dois lados de uma totalidade. Kuro é a seriedade que beira o ceticismo. É aquele personagem duro, rígido em suas escolhas e com olhar sempre distante, parecendo se preocupar de maneira pessimista com o que virá. Muitas vezes, tanto na história como na vida real, personalidade iguais a de Kuro são traduzidas como maturidade.

Já Shiro é o sonho e as brincadeiras. O otimismo corre em suas veias que chega a parecer ingenuidade. Sorri, grita, gargalha, inventa músicas sem sentido, mas cheias de palavras que toda criança acha engraçada (como pum), além de olhar a passagem do tempo com mais calma, aproveitando os momentos para terem boas lembranças do passado. Comportamento que geralmente é atribuído a imaturidade.

Entretanto, eu não acredito que Kuro é maduro, e nem que Shiro é imaturo. Mas sim, que ambos são a alegoria de dois extremos de nossas personalidades. Shiro é a nossa luz, enquanto Kuro é a nossa sombra.

Em grande parte da história, as duas crianças, conhecida nas ruas como Os Gatos devido a facilidade de andar entre os prédios da cidade, estão sempre juntas. O leitor é levado para uma reflexão de que Kuro e Shiro precisam ficar juntos assim que a trama separa os dois. Pois, eles se protegem, se completam. A união dos dois é o que os mantém vivos.

Sombra e luz

Com tantos antagonistas apresentados, percebemos que os verdadeiros vilões são os próprios Kuro e Shiro. Cada um de sua maneira.

Shiro sem Kuro, não passa de uma criança que sonha descontroladamente e viaja pelas nuvens sem conseguir firmar os pés no chão. Do que adianta tanto otimismo se não há espaço para colocá-lo em curso na realidade. Da mesma maneira que Kuro sem Shiro beira um descontrole dentro da própria sombra, levando o garoto a um mergulho mortal pela depressão.

Um voa muito sem controle, o outro está em uma queda livre mortal.

Matsumoto apresenta uma metáfora muito profunda sobre a relação de cooperação que a nossa sombra e nossa luz precisam ter. Defeitos e qualidades precisam andar unidas criando e construindo seres tão complexo que somos.

Durante diversos momentos em minha vida, aprendi que os defeitos (minhas sombras) não precisam ser expurgados de meu corpo, mas sim, que preciso colocar um pouco mais de luz em minhas tendências mais sombrias e abraçá-las. Dá mesma maneira que voar em sonhos de maneira desenfreada, sem segurar as rédeas que me puxarão para realidade, também me tirará do controle.

O equilíbrio é exatamente a dose certa de sombras e luz.

Cinza

É engraçado tocar nesse assunto, ainda mais por eu ser um grande fã de Star Wars. Uma franquia que iniciou tanto sua discussão sobre sombras e luminosidades de maneira tão maniqueísta e que, com o passar dos anos, passou a questionar muito o aspecto cinza da dualidade.

Equilíbrio não é arrancar o lado sombrio e deixar a luz permanecer. Muita luz pode nos cegar. Entretanto, quanto mais sombra existe, menos enxergamos também.

Então, tal qual Dave Filoni (produtor e roteirista das séries The Clone Wars, Rebels e The Mandalorian, para o universo expandido de Star Wars), Taiyo Matsumoto, ainda em 1994, mostrou que a melhor dose para o equilíbrio é ter a sombra e a luz unidas.

E só com as duas juntas conseguimos segurar a sanidade mental em uma cidade tão violenta. E sabemos muito bem, vivendo no brasil de hoje, como a violência pode chegar em diversos caminhos diferentes em nosso coração.

Tico Pedrosa é publicitário, roteirista, escritor, professor e criador de conteúdo. Fã de quadrinho desde sempre. Você pode conferir as ideias dele no instagram e twitter.

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