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"Anjos nascidos da lama"

30/06

por Rodrigo Ortega

Fotos: Rodrigo Ortega

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Leonard Cohen começa a cantar. Faz sol.

São mais de oito horas, mas ainda está claro. Ele está de paletó escuro de risca de giz e um chapéu cinza. A sua voz não compete com as guitarras, como as outras vozes que subiram neste palco, e sim com o baixo. O tom é grave, mas a expressão do rosto é suave. Porém, esse sorriso não é para mim. Esse chapéu cinza que vai da cabeça às mãos, revelando cabelos tão brancos quanto as nuvens que não estão no céu, é um sinal de reverência para os músicos de sua banda.

Entre vocalistas e intrumentistas de cordas, sopro e teclas, eles são nove. Passando de um por um, serenamente como nenhuma outra voz que subiu nesse palco, Leonard Cohen sorri e observa admirado. Glastonbury está olhando para o cantor canadense, mas ele desvia as atenções para os lados como se para dizer: "ei, "eu não estou sozinho".

Isto acontece pelo menos durante as duas primeiras canções, "Dance me to the end of love" e "The Future". "Que música vamos tocar agora?", ele pede ajuda aos músicos. "Ain't no cure for love". Leonard Cohen não está sozinho. Ele é sua banda, junto com os outros nove, que ao longo do show ele apresenta pelo nome repetidas vezes.

Eu também não estou sozinho. Eu sou Glastonbury, junto com as outras cem mil pessoas. É assim que nos chamam o tempo todo ("Bom dia, Glastonbury", "Boa tarde, Glastonbury", "Canta comigo, Glastonbury"). A mais próxima dessas pessoas é uma mulher que parece ter uns cinquenta anos ou mais. Cabelos lisos, grisalhos, roupas coloridas e uma mochila suja. Com um celular velho nas mãos, ela manda várias mensagens para alguém. Estico o pescoço. "same bloody stranges". Ela se inclina para o outro lado.

Na minha imaginação ela escuta Leonard Cohen, trinta anos atrás, com alguém que, trinta anos depois, tem várias mensagens não-lidas no celular.

"Hallelujah". Agora sim, somos Glastonbury. Duzentas mil mãos para cima, aleluia, é uma missa. Agora sim, Leonard Cohen tira o chapéu para nós. "É um prazer estar aqui com vocês, anjos nascidos da lama".

Mas o tempo é um demônio. O sol já está quase se pondo e, da próxima vez que ele nascer, já não vamos ser mais Glastonbury. "Closing Time" e ele já se despede. Eu estou sozinho. Depois "Anthem": "Há uma fissura em todas as coisas / É como a luz entra". O tempo é um demônio. Leonard Cohen está tocando teclado. Sozinho.

Na minha imaginação, a mulher de cabelo grisalho me dá um longo abraço de despedida. Na minha imaginação ela mandou todas estas mensagens pra mim, mas eu só vou receber daqui a trinta anos. Na minha imaginação há uma mensagem não-lida no meu celular. Ela diz: "Há uma fissura em todas as coisas. É como a luz entra".

Leonard Cohen pára de cantar. Não faz mais sol.

Amém.

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