Cosmópolis


Nossa avaliação

[xrr rating=4/5]

“Cosmópolis” não é um filme fácil. Mesmo para um diretor como David Cronenberg se trata de uma obra por demais hermética, difícil de ser recebida e digerida. Baseada no livro de Don DeLillo, a história segue Eric Packer (Pattinson), multibilionário de 28 anos de idade que tenta atravessar uma tumultuada Manhattan (no mesmo dia há uma visita do presidente, o funeral de uma celebridade e um protesto anticapitalista) em sua limusine para fazer um corte de cabelo. Mas a jornada é apenas uma desculpa, quase uma metáfora, para se discutir questões pós-modernas sobre relacionamento, consumo, violência e identidade.

Quase uma tese em forma de imagem e som, “Cosmópolis” é sobre a nossa atual passividade.  Assim como Eric dentro de seu luxuoso carro, vemos a vida passar pela janela como simples observadores, cercando-nos do máximo de segurança possível (seja essa segurança física, financeira ou amorosa). Estaríamos cada vez mais presos em nossas próprias fortalezas de solidão, mais distantes e com menos diálogos. A incomunicabilidade só consegue ser quebrada pela mutilação do próprio corpo para passar uma mensagem: daquele que se queima em protesto até os que fazem tatuagens e piercings, passando pela simplicidade de um singelo corte de cabelo, estamos todos querendo dizer alguma coisa. Mas o quê?

Cronenberg não oferece uma resposta fácil, construindo um filme gélido, com um tempo próprio, que incomoda. A identidade construída a partir daquilo que possuímos surge como um mal de nossa era, tornando-nos seres esvaziados de personalidade, preenchidos apenas pelo consumo. O apetite de Eric é para “ter”, pois apenas assim ele parece conseguir “ser”. Seu desejo por obras de arte, por comida ou por sexo aparece com a mesma intensidade (repare como ele só se encontra com a esposa enquanto comem). É um homem preso aos seus próprios padrões, ressaltado pelos planos fechados do diretor e seus enquadramentos simétricos.

A crítica ao mercado de ações futuras não está lá por acaso, e é também uma crítica às nossas decisões que tomamos no presente sempre pensando no futuro, sem viver o momento atual. Presos pelo medo do que possa vir a acontecer (fome, frio, doenças), criamos uma cultura defensiva, voltada para a prevenção. Isso gerou uma vida asséptica, sem graça, simetricamente planejada. As obras de arte que aparecem nos créditos iniciais e finais refletem bem isso: os borrões caóticos do início contra as linhas simétricas que encerram o filme. A questão do simétrico contra o assimétrico pontua toda a obra, em uma modernização da discussão nietzschiana do apolíneo contra o grotesco: o caos levaria ao sentimento de perfeição que, uma vez alcançado, levaria a uma busca social pelo caótico. É aquela história de que em um mundo onde só existe beleza, o feio se destaca e se torna atrativo por quebrar o padrão.

Em seu trajeto por Nova York, Eric parece se transformar, descobrindo que a vida simétrica não basta, e vai aos poucos perdendo seu equilíbrio perfeito (primeiro os óculos, depois a gravata, a torta, o cabelo, a mão). Seu caminho em direção ao caos é também o da razão para o instinto animal, do homem ao rato que é insistentemente apresentado ao longo da projeção. O sexo e a violência surgem como essa possibilidade de escape, de explosão dos padrões simétricos em busca do sentimento de se estar vivo.

Pattinson está bem, mas não é exigido nada além de frieza, o que é perfeito para um ator pouco expressivo. Mas sua escalação é o toque de gênio de Cronenberg: o galã da saga “Crepúsculo” é hoje um dos grandes modelos apolíneos, de feições perfeitas e simétricas. Sua gradual transformação e seu rosto impassível, desprovido de sentimentos, criam uma relação direta com sua própria limusine, bela, limpa e que vai aos poucos sendo completamente degradada. A diferença é que ao contrário do carro, Eric não é uma máquina, mas um homem.

Ou pelo menos tenta ser.


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