Nós


Nossa avaliação
Us (2019)
Us poster Direção: Jordan Peele
Elenco: Lupita Nyong’o, Winston Duke, Elisabeth Moss, Tim Heidecker


No final de “Hollywood Lawn”, baladinha melancólica de seu novo álbum “On the Line”, Jenny Lewis grita repetidamente que “your demons got reason to fight”. Os demônios de “Nós” (se é que podemos chamá-los assim) também têm seus motivos para o caos sangrento que provocam no filme do diretor Jordan Peele. Mas eles não são revelados até os minutos finais do longa – e, mesmo então, os métodos e objetivos do grupo não ficam totalmente claros.

Essa recusa em botar os pingos em todos os “is” e cruzar todos os “ts” é o que permite ao espectador – ao contrário da sátira bem clara e desenhada de “Corra!”, longa anterior do cineasta – interpretar das mais diversas formas a alegoria e o comentário social de “Nós”. E a consequência disso é que as impressões e conclusões do público ao final do filme dependem de uma série de reflexões e veredictos morais que vão dizer bem mais de si mesmos do que da obra em si.

E isso deve ser, ao mesmo tempo, o maior mérito e uma das maiores frustrações do longa. “Nós” é daquelas obras ambiciosas, com tantas sugestões, referências, pistas, camadas e possibilidades que, ao final, o longa precisa escolher quais ignorar e quais satisfazer. E um pouco como “Lost” – ou, ao menos, a primeira temporada de “Lost” –, o espectador que extrair seu prazer do passeio nessa montanha russa nerd vai curtir bem mais o filme do que aquele que esperar um final à altura de tudo que veio até ali.

A trama acompanha a viagem de uma família negra – o casal Adelaide (Lupita Nyong’o) e Gabe (Winston Duke) Wilson, e seus filhos Zora (Shahadi Wright Joseph) e Jason (Evan Alex) – a uma casa de praia que eles não visitam há algum tempo. À noite, porém, quatro cópias – seres idênticos aos Wilson, vestidos de vermelho – surgem na entrada da casa, iniciando um longo pesadelo madrugada adentro. E a chave para descobrir quem são esses invasores está em um trauma no passado de Adelaide.

“Nós” é um filme sobre duplos, e a fotografia de Mike Gioulakis (“Vidro”, “Fragmentado”) explora esse tema visualmente de quase todas as formas possíveis. A história começa num labirinto de espelhos; a primeira vez que vemos o rosto de Nyong’o ela está olhando/refletida no vidro do carro (à la Cleo em “Roma”); e há um belo plongée olho-de-deus da família chegando na praia, com suas sombras enormes projetadas pelo sol na areia.

Esses signos – espelhos, reflexos, sombras – são recorrentes durante a projeção. Mas o elemento visual mais importante do longa talvez seja o figurino branco de Adelaide, e como ele vai mudando de cor com o passar da carnificina: uma mudança externa, que só vai ser explicada quando ela mergulhar nas profundezas de seu próprio interior, representado pelas escadas e corredores que a protagonista desce no final. É um arco que Nyong’o – no primeiro trabalho à altura de seu talento desde “12 Anos de Escravidão” – interpreta de forma igualmente angustiante e introspectiva, sem jamais entregar ao público mais do que ele precisa saber, nas duas personagens que encarna na tela.

Toda essa iconografia e requinte visuais – associados às referência à Bíblia, história dos EUA, cultura pop – mostram um Jordan Peele mais seguro e ambicioso que em “Corra!”. Essa ambição e excesso de pistas e piscadelas, no entanto, podem acabar se tornando um pouco cansativas e pedantes com o passar do longa. E é por isso que o talento cômico do diretor – e sua capacidade de encontrar leveza mesmo nos momentos mais tensos – é fundamental.

Em “Nós”, esse humor vem muito das inspiradas escolhas musicais (de N.W.A. a Beach Boys) e do talento sempre inconfundível de Elizabeth Moss (“The Handmaid’s Tale”) – vivendo deliciosamente a visão fdp e um tanto perturbada que Peele tem de mulheres brancas, que coube a Allison Williams no filme anterior. O patriarca vivido por Duke (“Pantera Negra”) também serve como uma espécie de alívio cômico, mas seu timing soa pastelão demais para o tom do resto da produção e acaba por ressaltar alguns furos incômodos sobre sua ausência no ato final. Erros menores, e quase desimportantes, para quem se dispor a encarar o mergulho proposto por Peele – um mergulho que é mais interno que externo, e que pergunta menos “o que querem” do que “quem são” os verdadeiros demônios.


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