Transit (2018) | |
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Direção: Christian Petzold Elenco: Franz Rogowski, Paula Beer, Godehard Giese, Lilien Batman |
O que faz de Christian Petzold um dos mais interessantes realizadores alemães (e mundiais) contemporâneos é a forma única como ele tem reinventado um dos tópicos mais batidos e exauridos do cinema: o filme de época – em especial, de Segunda Guerra. Desde “Barbara”, e principalmente do excelente “Phoenix”, o diretor vem usando premissas típicas de obras do gênero para questionar como, com que direito e por que o cinema insiste em reencenar eventos essencialmente indescritíveis, injustificáveis e irreproduzíveis. E mais ainda: o que todos esses longas dizem dos artistas que os criaram e do mundo hoje, que os produziu.
Petzold não quer entender a Segunda Guerra, mas sim por que somos tão obcecados com, e definidos por, ela. E ele leva isso ao extremo ao adaptar “Em Trânsito”, não exatamente atualizando (ao pé da letra) o romance homônimo de Anna Seghers, mas atravessando sua história com o contexto atual.
A trama permanece essencialmente a mesma: Georg (Franz Rogowski, um Joaquin Phoenix alemão), clandestino na França ocupada pelos nazistas, recebe a missão de entregar duas cartas a um escritor, Weidel, descobre que ele está morto e acaba roubando sua identidade e seu visto, com o objetivo de escapar para o México. No entanto, Petzold filma essa história em meio a locações, carros e figurantes da Marselha dos dias de hoje – trazendo não a história, mas sua encenação, para o século XXI.
Mais do que apenas criar um paralelo bastante claro com a atual crise dos refugiados, isso reforça o velho argumento de Rust Cohle, “time is a flat circle” – e lembra os europeus de que seus antepassados já estiveram numa situação bastante similar à dos imigrantes que eles têm recebido e/ou rejeitado. E assim como nos demais filmes do cineasta, o fascismo e a Segunda Guerra não são parte da nossa história, mas de nós mesmos, de nossa própria humanidade, algo que estamos fadados a repetir por sermos patologicamente incapazes de superar.
Também como nos demais longas de Petzold, “Em Trânsito” é uma obra sobre empatia, sobre a experiência e a importância de se colocar no lugar do outro. Ao deparar-se com Marie (a boa Paula Beer, de “Franz”), esposa de Weidel, Georg descobre que decidir ocupar a vida de alguém, estar no seu lugar, implica responsabilidades: você não pode escolher só as partes boas.
E o cineasta amplia essa questão para, mais uma vez, discutir o próprio papel do artista e a ética de contar histórias alheias. Num diálogo com o cônsul norte-americano, o protagonista deixa bem claro esse questionamento, que Petzold já havia feito em “Phoenix”: com que direito narramos, reencenamos, romantizamos o horror? E com que objetivo? Se parecemos fadados a repetir tudo de novo? Escrever/narrar, sem consciência disso, é dar sentido ao que não tem. Romantizar o caos indenominável da nossa humanidade.
Não por acaso, Georg é um homem quase sem história própria, que atravessa e se alimenta da vida, dos eventos e dos casos dos outros – como um artista. “Em Trânsito” é um longa filmado majoritariamente em lugares de passagem – quartos de hotel, salões de cafés, salas de espera – porque seus personagens não têm lugar no mundo. Estão em trânsito, na expectativa de uma nova existência, um novo lugar, uma nova identidade, que faça sentido.
E o mais curioso é como o filme contrabandeia essa discussão, que parece bastante densa e teórica, por sob uma trama que é – na sua estrutura – um melodrama à la “Casablanca”. Uma reflexão sobre como o amor torna uma pessoa nosso lugar no mundo. Numa história, e numa época, sem tempos e lugares fixos, essa parece ser a única constante a se agarrar.