By the Grace of God (2018) | |
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Direção: François Ozon Elenco: Melvil Poupaud, Denis Ménochet, Swann Arlaud, Éric Caravaca |
O título de “Graças a Deus” vem de um ato falho do cardeal Barbarin (François Marthouret) durante uma coletiva, quando ele celebra o fato de que vários dos crimes cometidos pelo padre Bernard Preynat (Bernard Verley) já estavam prescritos – o primeiro e único momento no filme em que ele revela sua verdadeira opinião sobre as acusações e abusos retratados. Mas há uma outra sequência em que a expressão é usada e que diz muito do longa do cineasta François Ozon.
Ela é a resposta dada pelos filhos do sobrevivente Alexandre Guérin (Melvil Poupaud) ao serem ungidos com o óleo da crisma. “Recebam a marca de Cristo”, diz Barbarin. “Graças a Deus”, eles respondem. E de uma forma bastante perversa, essa é uma síntese do filme: crianças sendo eivadas com uma marca que vai acompanhá-las pelo resto da vida, num ritual criminoso que atingiu níveis e números escandalosos “graças a Deus” – ou graças ao poder deturpado que a igreja extrai d’Ele.
O longa conta a história real de como os crimes sexuais cometidos na região de Lyon pelo padre Preynat – que, entre os anos 80 e 90, abusou de pelo menos dezenas de crianças nas paróquias em que atuou, com o conhecimento de seus superiores – vieram à tona a partir de uma investigação iniciada em 2014 por Alexandre Guérin, uma das vítimas. Sua denúncia fez uma série de outros sobreviventes se apresentarem e contarem suas histórias, num dos maiores escândalos da igreja católica na França.
Dado o peso do tema, a maior tentação (com o perdão do trocadilho) é enxergar “Graças a Deus” como um “Spotlight” francês. Mas esse foco nos sobreviventes, que são os verdadeiros condutores da trama, é o grande diferencial da produção – e seu maior mérito. Alexandre, François Debord (Denis Ménochet) e Emmanuel Thomassin (Swann Arlaud) foram, sim, vítimas de abuso sexual quando crianças. Mas não são vítimas no filme de Ozon. Pelo contrário, são heróis e protagonistas de sua própria história.
Numa estrutura sui generis, o roteiro começa centrado no católico e conservador Alexandre, que tenta fazer com que a igreja expulse Preynat e, sem sucesso, recorre à justiça; segue para François que, ateu e colérico, é encontrado pela polícia e usa o inquérito como trampolim para a criação de uma associação de sobreviventes; e chega até Emmanuel, um dos mais afetados pelas ações do padre, que se tornou o centro do processo legal por seu abuso não ter prescrito à época da denúncia. Em cada um desses momentos, eles são os protagonistas do filme, que deixa imprensa e policiais às margens da história, botando os sobreviventes no centro da tela.
É uma decisão que faz de “Graças a Deus” uma mistura insólita do “procedural” investigativo com estudo de personagem. Cada um dos três “atos” apresenta um estilo mais afeito ao seu personagem central: o início é um longa quase epistolar, marcado pela formalidade dura e fria de Alexandre e sua troca de e-mails com a igreja católica e seus ritos a portas fechadas, num docudrama próximo do Cinéma Vérité; a entrada de François é o momento em que a história se abre e sai para o mundo, tornando-se realmente um movimento coletivo e indignado, com planos mais abertos e um ritmo mais acelerado; e o ato final com Emmanuel é um retrato sóbrio e melancólico dos efeitos do abuso.
Essa estrutura permite a Ozon conferir uma maior complexidade ao tema, mostrando como cada um deles respondeu de forma diferente à violência sofrida e tem opiniões diferentes de como lidar com as acusações. Do católico Alexandre ao ateu François, o filme não ignora que o grupo nem sempre concordava unanimemente sobre os métodos – e mesmo os dois, com suas famílias e vidas saudáveis, destoam bastante da existência disfuncional e mutilada de Emmanuel. O cineasta tenta dar espaço e argumentos a cada um desses pontos de vista, e o resultado funciona bem, ainda que o ato final sofra um pouco o peso da duração de 2h17, com algumas cenas mais íntimas parecendo interromper o fluxo do arco maior da narrativa.
Ainda assim, “Graças a Deus” é um retrato realista – e, acima de tudo, extremamente digno – de um grupo de homens que superaram o pior tipo de violência imaginável e se uniram contra a instituição mais poderosa do mundo. Protegida por homens que acreditam que a instituição é mais importante que o crime, mesmo que o crime tenha sido cometido por um predador sexual de traços levemente sociopáticos – Preynat nunca negou o que fez, e admite os abusos diante de suas vítimas com uma facilidade assustadora. Mas como eles mesmos dizem no filme: não é simplesmente contra a igreja, é em defesa de Deus, e o que ele representa para quem (ainda) tem fé.