A Liga da Justiça e os Deuses


Na semana em que estreia a versão do diretor Zack Snyder sobre o seu filme da Liga da Justiça, me dei um tempo para reler a HQ Reino do Amanhã, escrita por Mark Waid e desenhada por Alex Ross. Acredito que essa Graphic Novel é a que mais explora nos quadrinhos a visão dos heróis serem deuses na Terra, tal como Snyder explora em seus filmes do Universo DC. Porém, Waid e Ross trazem, não apenas os questionamentos de sobre a existência de deuses, mas também o fato de nós, humanos, termos a tendência de achar que qualquer um pode ser um mito e que ele vai salvar a Terra de todos os males. Fazendo com que Reino do Amanhã, seja um marco da história atual da humanidade.

Estranho visitante

Em sua história, Reino do Amanhã traz uma visão do futuro dos super-heróis. Pelo menos dos super-heróis que populavam o universo DC, em 1996. Neste futuro há diversas mudanças, mas a principal é de como os heróis se tornaram qualquer um. A geração de Superman, Mulher-Maravilha e Batman foi substituída não apenas pelo legado e filhos desses ícones, mas por uma série de raças e tribos de super-humanos, que fazem a justiça de uma maneira sem empatia. Não importa quantas pessoas morriam no fogo cruzado, o importante era que a “justiça fosse feita”.

Essa geração tem um ponto de virada, a atuação de Magog que aparece para as pessoas como uma grande “evolução” na maneira de ser um herói. Usando a força e a violência acima de qualquer um. Magog mata o Coringa, após o palhaço do crime matar muitas pessoas, inclusive Lois Lane, colocando em prática a ideia populista de que “bandido bom é bandido morto”. Coringa esse que nem Superman e nem Batman conseguiram deter.

Depois disso, Magog e sua equipe destrói parte do Kansas para capturar o vilão Parasita, mesmo com ele já rendido. Logo, a visão populista de Magog fez com que ele caísse no gosto popular e Superman passasse a viver isolado. O kryptoniano deixa a humanidade sofrer as consequências de suas próprias escolhas.

E ela sofreu.

Verdade e Justiça

Assim, com a aposentadoria do Superman, os maiores heróis da Liga também se aposentaram, deixando o espaço livre para uma nova geração de heróis. Heróis que matam, que não se preocupam com a humanidade, que fazem justiça da maneira mais cruel e mesquinha que uma “justiça” pode ser imposta.

É então que o anúncio do apocalipse chega. Sandman (o já idoso antigo membro da Sociedade da Justiça) tem diversas visões em seus últimos dias de vida e, após sua morte, seu amigo e pastor de igreja Norman McCay é contactado por Espectro. O Espírito da Vingança faz de McCay o protagonista da história, conduzindo-o por diversos momentos da narrativa, até a derradeira chegada do fim dos tempos.

E o final dos tempos começa com o retorno de Superman e da Liga da Justiça. Eles querem impor uma conduta correta a todos os novos super-heróis que se perderam no egocentrismo de serem considerados deuses.

A era dos heróis

McCay está nesta história porque ele nos representa. Uma história com tantos seres considerados divindades, precisava ser conduzida por um humano para que o leitor pudesse ter identificação e pudesse ver os acontecimentos de baixo. A grande questão é que nós como sociedade temos a tendência de escolher heróis e mitos para nos salvar e esquecemos da imensa capacidade que temos de sermos enormes, e proporcionalmente, da capacidade desses tais enormes serem insignificantemente inúteis.

Na edição definitiva de Reino do Amanhã, lançada em 2013 pela Panini, Elliot S. Maggin, escritor da adaptação de Reino do Amanhã para romance, descreve os heróis como “alguém que precisa entender o valor da vida de alguém: seus feitos, suas ideias e seus amores”. Será que hoje, aquele que recebe o tão inimaginável apelido de “mito” que está a frente de nosso governo federal é o herói tão venerado por muitos?

A era dos mitos

Escrevo este texto em uma semana em que o brasil se tornou o epicentro de uma pandemia, que mais de 3 mil pessoas morrem por dia com uma doença que, em um ano, já matou no brasil, mais do que a AIDS desde sua descoberta em 1980. E que, recorrentemente ouvimos de nosso governante minimizações, frases grosseiras, inverdades e uma falta de empatia sobre os tantos mortos.

Sem tomar atitudes como governante, ele incita a descrença na ciência, coloca dúvidas sobre as prevenções a serem tomadas para não espalhar o vírus, faz propaganda sobre remédios sem eficácia comprovada, e assiste o mundo diminuir os casos, enquanto o brasil pega a contramão com o aumento dos números de morte e do surgimento de variantes de um vírus. Deixa nosso país cada vez mais minúsculo, como o b que eu uso para nominá-lo, e cada vez mais isolado de todo o mundo. Sem contar o tombo na economia.

É esse mesmo o herói que a maioria dos que votaram em 2018 queriam? É esse o herói que nos representa?

Lá no céu

Maggin também cita o pacífico líder Mahatma Gandhi, que diz que os ordinários entre nós, são os heróis e os mais interessantes entre nós, são bem ordinários e imperfeitos. Então, por que essa tendência de procurar heróis e salvadores? Por que a tendência de tentar se abster da responsabilidade de se modificar e se tornar alguém melhor esperando que um ser “do alto” venha solucionar todos os problemas?

Ora, aquele que se senta na cadeira do planalto não é nada mais e nada menos do que um de nós. Então, enquanto formos corruptos, apáticos com a dor do outro, malandros e cheios de resolver tudo com jeitinho, mais e mais presidentes farão igual ou pior àquele que se deixa dizer ser mito. Porque mais ordinário ainda ele é. Principalmente por aceitar, de maneira tão egocêntrica, o nome que a ele atribuem.

O verdadeiro heroísmo olha com amor. Olha de igual. Nunca de cima.

E engraçado como a tendência da humanidade é gostar de ser olhada de baixo, não é? “Deixe que o outro resolva o problema do mundo, de um país”. “Deixa que eu seja pisado e que ainda brigue com meus iguais pra que eu seja pisado com mais força ainda”.

Batalha sem fim

O que se segue em Reino do Amanhã é exatamente o que conseguimos observar claramente em nossa realidade. Pessoas divididas, alguns apoiando os novos e sangrentos heróis e outros apoiando deuses antigos que ainda tendem e beiram comportamentos extremos. Há aqueles que estão ao centro, buscando ganhar com a divisão. Há também quem está em diversos outros lados, tangentes e diagonais, impondo saídas egoístas e de tamanho genocídio. E, claro, há aqueles que estão embaixo, esquecidos, pisados e maltratados. Nós.

No final da história, a conclusão que segue é uma trágica: para acabar com esse período de oposições e guerra era necessário um Ragnarok, ou seja, um final do mundo seguido de um reinício. Isso funcionou na epopeia dos deuses da DC Comics e da Liga da Justiça, mas será que no mundo real funciona?

Porque o próprio Batman deixa claro após o fim do clímax digno de uma batalha entre deuses e bombas atômicas que “sobreviveram o suficiente para todos os problemas voltarem novamente”.

Então, Waid e Ross me deixam diversos questionamentos sobre o que observo e vivo hoje em meu país. Será que um fim do mundo é o preço que temos que pagar para as coisas se ajeitarem? Ou será que todas as nossas escolhas nos levaram a um apocalipse tão inevitável?

Fim dos tempos

Nosso protagonista, McClay tem divagação parecida e um momento de escolhas extremamente difícil: para poder salvar o mundo, teve que escolher entre destruir parte da humanidade ou destruir todos os super-heróis. E com essa dúvida em sua frente, ele simplesmente não decide e o fluxo da história continua, tão catastrófica quanto, para um fim.

A pequenez de McClay como humano, fez com que ele não arcasse com a responsabilidade de fazer algo. E o que a nossa pequenez está nos ensinado? A errar sobre nossas escolhas futuras ainda vendo em pessoas ordinários algo extraordinário que não existe? Ou que nós que somos esses extraordinários?

Pelo que eu venho observando, ainda mais com manifestações em favor dos ideais genocidas que circulam por esse brasil, infelizmente, ainda acho que é a primeira opção.

Tico Pedrosa é publicitário, roteirista, escritor, professor e criador de conteúdo. Fã de quadrinho desde sempre. Você pode conferir as ideias dele no instagram e twitter.


2 respostas para “A Liga da Justiça e os Deuses”

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