Um Covid para você conhecer


Momentos que são marcos de nossa história são marcados em inúmeros relatos. Quantos filmes sobre guerra existem? Quantos quadrinhos sobre confrontos históricos não foram feitos? E livros? Quantos há sobre relatos de sobreviventes de catástrofes? Não seria diferente com a Covid-19. A pandemia, que custa tanto em acabar, principalmente em um país de pessoas tão egoístas, já é berço de grandes histórias. Há duas semanas eu falei sobre a HQ Isolamento, que é um relato muito importante de alguém que viveu a quarentena observando as janelas de seus vizinhos. Hoje, resolvi falar de Você Não Me Conhece, quadrinho de Guilherme de Sousa, um fragmento da vida deste quadrinista durante o primeiro ano da pandemia do novo coronavírus.

Prazer

Você Não Me Conhece é uma autobiografia no modelo slice of life, ou seja, não conhecemos toda a história do autor Guilherme de Sousa, apenas um fragmento, uma fatia, um importante acontecimento. Esse trecho de sua vida é justamente os meses entre março e dezembro de 2020, o primeiro ano de pandemia no brasil.

Guilherme nos leva para dentro de sua casa e de sua dinâmica com a família. O título espanta, parece afrontoso, como se afastasse as pessoas em um pré-julgamento que poderia ter das atitudes dele como pessoa. Bom, essa pode ser a interpretação rasa do famoso “não se julga um livro pela capa”, e é bem real no caso de Você Não Me Conhece. Porque o título (explicado na narrativa da história), na verdade, é um convite para nós conhecermos Guilherme, como se o abrir das páginas, fosse o abrir da porta de sua casa.

Guilherme conta como foi sua mudança de dinâmica no início da pandemia. O trabalho em home office, a vida de sua esposa, Thais, que teve que se reinventar no trabalho, o convívio com a família de sua esposa e com sua própria família. Todas as figuras que passamos a conhecer tão bem em nosso próprio convívio: os negacionistas, idosos que precisam de cuidados, as pessoas que continuavam a viver normalmente, as pessoas que se isolaram, as pessoas que tentavam se proteger mais e escorregavam na nova dinâmica de vida. E teve, também, aquelas que contraíram a Covid-19. Aliás, Guilherme foi uma delas.

Boas-vindas a você

Esse é o principal ponto desta história. Porque ela não é sobre os sogros de Guilherme e a família de sua esposa que desrespeitava o isolamento. Também não é uma história sobre os pais dele que contrariam a doença mesmo se cuidando. Ou mesmo uma história sobre a avó religiosa de Thais que ficou aos cuidados do casal. Não é uma história de como Guilherme levava a vida ou de como a irmã dele era forte. Você Não me Conhece é sobre uma experiência dentro de um contexto tão arrasador como a pandemia. A experiência, era a Covid.

Experiência aqui não tem a ver com testes, e sim com vivências. E é muito bonito ver como Guilherme se abre para essa vivência, e principalmente, como ele se abre para expor. São relatos íntimos onde poucas pessoas, pouquíssimas mesmo, teriam a coragem de se abrir.

Logo, o que Guilherme nos traz é uma história muito corajosa, mas não de quem não tem ou nunca teve medo, e sim, de alguém que vivenciou o medo. É daí que sai a coragem. Coragem não tem nada a ver com estufar o peito orgulhoso e seguir de queixo erguido e prepotente. Isso é idiotice, e de idiotas esse país tá cheio. Guilherme traz a coragem dentre de sua vulnerabilidade. Isso é ser corajoso de verdade.

Sinta-se em casa

E quais são esses relatos? No início do mês de dezembro de 2020, Guilherme contraiu Covid-19 enquanto cuidava de seu pai, que estava de recuperação da doença. De recuperação em casa, após 10 dias, o estado clínico de Guilherme piorou e ele foi para o hospital onde precisou ser internado.

Foram apenas mais 10 dias entre a internação e a alta, mas Guilherme começa a relatar os momentos mais difíceis. A entrada no Centro de Terapia Intensivo, o total isolamento com o exterior, sem contato com familiares, o medo, a ansiedade, e a total privação de sua intimidade para as necessidades básicas. Ir ao banheiro? Era com uma comadre na cama. Tomar banho? Era com uma higienização feita por enfermeiros com ele ainda na cama. Nem a própria bunda Guilherme conseguia limpar sozinho.

Parece forte falar desta forma, mas é assim mesmo que acontece durante a recuperação dentro do CTI. Não apenas com a Covid-19, mas com qualquer doença que debilite o paciente. Com tantos negacionistas e pessoas que acreditam em conspiração chinesa, esses relatos de Guilherme podem ser tratados como mentira, sensacionalismo, mimimi. Para essas pessoas, sem nenhuma compaixão e que me percebo cada vez mais cercado, espero que um dia entendam.

Não repare a bagunça

O relato de Guilherme é real. Não apenas porque acredito na narrativa de sua história, mas porque convivi com quem contraiu a Covid-19 e ficou 20 dias internado. Meu padrasto, um homem muito gentil, e que tive muito medo de perdê-lo, apenas 10 dias depois que meu avô havia morrido (não pelo coronavírus), me contou sobre a história de sua internação. Não muito diferente do que Guilherme relata em Você Não Me Conhece.

Marcos históricos são muito bem datados e explorados pela arte. A pandemia não acabou, ainda muitas histórias serão contadas. Filmes? Livros? Séries? Quadrinhos? Teremos todos. E se todos forem tão íntimos e verdadeiros como Você Não Me Conhece, estaremos muito bem servidos e informados.

Não apenas por boas maneiras de se contar uma história, mas sim, por um relato histórico tão importante para uma época em que, pouco a pouco, parece dar mais importância para achismos do que para os fatos e a ciência.

São tempos sombrios, mas sempre aparece artistas incríveis com uma lanterna espalhando um pouco de luz.

Tico Pedrosa é publicitário, roteirista, escritor, professor e criador de conteúdo. Fã de quadrinho desde sempre. Você pode conferir as ideias dele no instagram e twitter.


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