Na Prateleira: A História Sem Fim (1984)


Nossa avaliação

Nuvens se movem ao som de um teclado muito suspeito acompanhado por uma bateria de karaokê. Com filtros coloridos e muita distorção de imagem, a abertura de “A História Sem Fim” é um ótimo exemplo da duvidosa estética audiovisual dos anos 80.

O filme dirigido por Wolfgang Petersen em 1984 e reprisado um sem número de vezes no Cinema em Casa do SBT é uma fantasia infantil ingênua e ao mesmo tempo sombria. Adaptado do livro de Michael Ende, o roteiro segue Bastian (Barret Oliver, que se tornou fotojornalista), um menino vítima de bullying na escola e que busca refúgio nas páginas de um livro “mágico”. A sacada metalingüística é que o garoto lê uma história que está realmente acontecendo naquele momento, e é sua capacidade de imaginação que pode salvar aquele mundo – não por acaso chamado Fantasia – da destruição pelo Nada.

Fantasia é um mundo mantido pela imaginação humana, e em uma realidade cada vez mais cética e objetiva como aquela dos cínicos anos 80, o Nada ganha força e começa a consumir tudo à sua volta. É a capacidade criativa de Bastian e sua crença no fantasioso que irão impedir a sua destruição.

Há o cuidado de já apresentar o garoto como alguém ligado mais ao mundo da fantasia do que à realidade. Em uma conversa com o pai, o claramente disperso Bastian tenta explicar porque desenhou unicórnios no livro de Matemática. Em um rápido diálogo sabemos que o menino não gosta de praticar esportes e que sua mãe faleceu há pouco tempo.

Fugindo dos colegas que querem jogá-lo mais uma vez dentro de uma caçamba de lixo, ele se refugia em uma antiga livraria, onde vai encontrar o livro que conta a história em que ele próprio é personagem. Antes, porém, Bastian cita para o livreiro todos os livros que já leu e que são, claramente, os grandes inspiradores dessa aventura: “A Ilha do Tesouro”, “O Último dos Moicanos”, “O Mágico de Oz”, “O Senhor dos Anéis”, “Vinte Mil Léguas Submarinas” e “Tarzan”.

O garoto leva o livro para ler no sótão escuro e empoeirado da escola. O ambiente fechado, opressivo e sem cor é importante para criar o contraponto com o mundo de Fantasia que vai surgir na tela assim que Bastian começa a ler o livro. Aí, os planos fechados no garoto isolado no sótão dão lugar aos enquadramentos abertos e coloridos mostrando o mundo da imaginação.

“Era meia-noite na Floresta Uivante. O vento soprava através da copa das árvores antigas. De repente, algo enorme ecoou com estrondo através da floresta sinistra”.

E assim, juntos de Bastian, somos enviados para uma outra realidade. Como o Jim Hawkins de “A Ilha do Tesouro”, a Dorothy de “O Mágico de Oz” e o professor Aronnax de “Vinte Mil Léguas Submarinas” Bastian é transportado (não fisicamente, mas apenas mentalmente) para um universo totalmente desconhecido, repleto de maravilhas e perigos surpreendentes.

A primeira cena em Fantasia ainda é escura: algo se move em uma espécie de pântano cinzento. E então uma criatura rosada se ergue trazendo o primeiro ponto de cor. A partir daí, Petersen vai apresentando em planos rápidos os mais estranhos e coloridos personagens.

Na história lida por Bastian, a imperatriz de Fantasia está morrendo e um jovem índio é a única esperança de salvá-la: Atreyu (Noah Hathaway). Se o pequeno herói não cumprir sua missão, ela morrerá e todo o seu mundo será destruído. O personagem possui em si duas características míticas da noção de pureza: como índio, está ligado à natureza e à ideia do homem primordial, livre da ambição. Como criança, está afastado do pecado e puro para ser guiado pelos mais verdadeiros sentimentos.

É a velha noção de heróis poderosos graças à sua ligação ao estado mais natural do mundo, como é visto em “Tarzan” e “O Último dos Moicanos”.  E assim como Frodo, ele parte em uma jornada que o leva a atravessar todo aquele mundo, na tentativa de impedir a dominação do Nada, um ser tão impalpável quanto o Sauron de “O Senhor dos Anéis”.

“A imperatriz já havia mandado chamar o grande guerreiro. Quando ele finalmente chegou à Torre de Marfim, carregava as esperanças de toda Fantasia”.

A jornada de Atreyu começa com planos abertos e coloridos explorando toda a geografia daquele mundo impossível. A música é grandiosa e a narrativa se enche de esperança. Mas então a trilha sonora desaparece e Atreyu chega a um pântano, cinza, sem vida. E aí, “A História Sem Fim” quebra todas as expectativas e se revela um filme muito diferente do que se imaginava.

“Todo mundo sabia que quem se deixasse dominar pela tristeza, afundaria no pântano”.

Dominado pela tristeza do pântano, Artax, o cavalo de Atreyu, começa a afundar. O garoto se desespera, grita, mas é em vão. O cavalo desaparece na lama e toda a esperança se vai junto. A morte de Artax cria, com meia hora de filme, um sentimento de que tudo é possível, e que aquele final feliz óbvio já não é mais tão óbvio assim. “A História Sem Fim” torna-se, de repente, surpreendentemente sombria.

Na Montanha Casco, Atreyu encontra Morla, O Ancião, uma tartaruga gigante que assusta Bastian. O garoto grita no sótão da escola e seu grito é escutado em Fantasia. É a primeira vez que a possibilidade de união entre os dois mundos aparece e o papel de Bastian na história começa a ficar mais claro.

A aventura de Atreyu continua, com várias situações sem sentido e personagens que aparecem e desaparecem sem maiores explicações. Até que ele encontra o cachorro-dragão Falkor, que vai ajudá-lo a procurar uma criança que possui o poder de salvar Fantasia.

Atreyu chega às ruínas que possuem a sua própria aventura pintada nas paredes. Como em quadros, ele revê os momentos pelos quais acabou de passar, e a cena é assustadora. Nessa hora, o filme parece se assumir como terror, com cenas sombrias demais para as crianças. A mais aterrorizante delas é quando Atreyu contempla a imagem de um lobo atravessando a parede das ruínas onde o herói se encontra. Não é preciso muito para adivinhar o que vem a seguir.

No corte seguinte, vemos Gmork, o lobo que é a própria representação do Nada. Trava-se aí o melhor diálogo do filme.

- Garoto bobo. Você não sabe nada sobre Fantasia? É o mundo da imaginação humana. Cada parte, cada criatura, é um pedaço dos sonhos e esperanças da humanidade. Portanto, não tem limites.

A história segue cheia de desesperança, até que Bastian é obrigado a intervir fantasiando e recriando Fantasia com o poder da imaginação. Depois disso, o filme se perde no final, abusando da boa vontade de quem assiste e jogando para o alto toda a sutileza na relação entre fantasia e realidade: não há, por exemplo, nada que justifique a invasão de Falkor ao mundo real para que Bastian possa se vingar dos colegas que o perseguiam.

São problemas que tiram muito da força do que vinha sendo construído até ali. Mas apesar do final constrangedor e dos efeitos especiais mais do que datados, “A História Sem Fim” permanece com um charme inegável, talvez resultado desta bem dosada mistura de inocência com filme de terror.


2 respostas para “Na Prateleira: A História Sem Fim (1984)”

  1. só de falar deste filme, meus olhos já se enchem d’água ^^
    com o perdão de parecer arcaica, já não se fazem mais histórias juvenis como as das Sessões da Tarde dos anos 80/90, quando eu vi o trailer de “onde os montros vivem” achei que este poderia repetir o sucesso daqueles, mas, infelizmente, eu não senti a mesma coisa, vai ver o problema seja comigo, não to mais na idade de ver essas coisas ^^

  2. Gostei muito do seu texto, concordo com muitas coisas, mas queria fazer um adendo. No final, quando Bastian e o Dragão da Sorte estão no mundo, na verdade ainda estão na imaginação de Bastian. O narrador explica isso, comentando que o que vem posteriormente poderia não ser daquele jeito, mas que seria outra história. Parabéns, muito bom! Forte abraço!

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