O Medo e o Terror (ou a forma que somos manipulados através das eras)


Medo e Terror são armas poderosas para quem está no poder, isso é mostrado desde a antiguidade. Qin Shi Huang, Herodes, Nero, Gêngis Khan, Hitler são apenas exemplos que, era após era, aparecem para governar. Eles induzem o medo, criam vilões fictícios para que eles sejam postos e condecorados como heróis salvadores ou mitos, espalhando mentiras para aparecerem com verdades inventadas e ganharem apoio popular. No fim, a resposta é sempre conflitos, ódio, terror e mais medo.

Pensando nisso, vemos que governar por meio da mentira e do medo é algo que vai além do tempo, além dos continentes, além da realidade e ficção, e muito provável, além da própria humanidade.

É neste contexto que chagamos até Talessak, uma das quadrinhistas nacionais mais plurais e completa da atualidade. Que com sua ousadia artística, enquanto testa cada vez mais estilos diferentes de arte, consegue colocar escondido em seus roteiros questões bem profundas abordadas de maneira simples.

Deimos e Phobos é o trabalho mais recente dela, onde somos levados para além do tempo, para mostrar no passado o que estamos vivendo ainda hoje.

A luta pela conquista do Sol e da Água

Água, sol e egoísmo

A história de Deimos e Phoebos é narrada por um arqueólogo que descobre placas e artefatos de uma antiga civilização, que pode anteceder a Mesopotâmia e o Egito. Conforme ele explica suas descobertas e estudos, o leitor é levado para o passado, em uma mistura de viagem no tempo com imaginação.

Nesta civilização um embate entre duas tribos está acontecendo: os Adads e os Ninurtas, e esse conflito é crucial para a continuidade de ambas. Isso porque a água no local está acabando, e o pouco que existe está contaminada. Os Adads detém quase toda a água potável disponível, sabendo disso, seu líder Arius, faz um acordo com Dismas, o líder dos Ninurtas, ele oferece uma trégua nos conflitos, mas em troca, os Ninurtas precisam entregar o sol deles. Este sol é Báskara, a parceira de Dismas.

Para dificultar ainda mais, eles estão passando por uma temporada em que os dias não nascem mais. É noite a todo o tempo e os habitantes não tem mais a noção do decorrer dos dias.

Ou seja, deu para perceber que não importa o quanto o povo precisava de água, o quanto o povo está perdido numa noite eterna, ou o quanto eles estavam sofrendo no meio de uma guerra, o que Arius queria como governante era apenas benefícios pessoais.

A água está acabando? O povo vive dias na escuridão? O que importa? Se ele tiver a mulher que cobiça, ótimo.

E sabe o que é mais triste? Arius sequer ama Báskara. Ele só quer possuir e controlar algo que foi de seu rival. Simples.

As sombras no meio da escuridão

É impressionante que, conforme entramos mais na história de Deimos e Phobos, percebemos que não há heróis. Mesmo que no primeiro momento Arius pareça o vilão, vemos as atitudes de Dismas e nos damos conta de que ele também não é bonzinho. Manipula descaradamente seu povo só para conseguir ter o que quer na disputa contra Arius.

Quantas vezes você foi enganado por governantes, achou que eles eram bons e que serviriam ao bem comum? Quantas vezes você já percebeu que os heróis que você exaltou só queriam salvar a própria pele?

Se você acha que nunca foi enganado e tem a convicção de que absolutamente todas as suas escolhas foram corretas, talvez você já esteja tão imerso na escuridão e não consiga enxergar. Exatamente como os Adads e os Ninurtas.

Para abrir um pouco os olhos, indico assistir The Boys, série da Amazon Prime, que é certeira neste assunto.

Preto, vermelho e dourado

Para representar a cegueira, Talessak desenha uma história completamente preta. Tudo é feito sobre o papel preto e os desenhos são delimitados com o branco. Além disso, as únicas cores presentes na história são o vermelho e o dourado.

O preto representa a total escuridão e a vista grossa com as questões importantes, tal qual o medo e o terror da civilização sem água. Já o vermelho vem dar um banho de sangue na narrativa, simbolizando a violência, além de simbolizar a paixão. Paixão essa não apenas no sentido amoroso, mas a paixão pelo poder, pela soberba e orgulho, magistralmente simbolizados pelo dourado.

Neste contexto, com essas cores e misturados com vestimentas baseadas em civilizações antigas, sentimos identificação com as ações deles, pois são coisas que presenciamos em nosso dia a dia (que pensamos e fazemos também, de forma passional), mas que, ao mesmo tempo, traz um desconforto quase que inumano. Como se aquelas cores densas não retratassem o que somos.

Ou será que o desconforto é apenas medo de olhar no espelho e observar nossa sombra?

Ser ou não ser

Com um mar de simbologia e referências, muitas delas não citei aqui simplesmente pelo fato de não querer estragar a experiência da história (principalmente sobre o final e a origem da civilização), as mais difíceis de não comentar são os atributos shakespearianos.

A trama, que cresce a cada narração do arqueólogo, ganha personagens e enriquece uma teia de intrigas onde todo mundo quer algum benefício completamente pessoal com o conflito.

Mentiras, traições, seduções, jogos de poder. Tudo condensado em um único álbum que deixaria Otelo, Macbeth e Hamlet muito orgulhosos.

De olhos fechados no escuro

Deimos e Phobos tem tudo para se tornar uma obra muito importante dentro do cenário dos quadrinhos nacionais e independente. A versatilidade da Talessak com sua arte, lhe dá a capacidade de ser completamente diferente em cada obra que atua. Autores geralmente dizem que suas obras são como filhos, no caso da Talessak isso é inegável, pois ao mesmo tempo que obra tem uma identidade e uma personalidade própria, todas são feitas com uma assinatura forte e peculiar.

Os deuses gregos do Medo e do Terror dão nome para este quadrinho, mas pode vir com coragem. Devido a riqueza de simbologia, a obra consegue ser entendida de maneira profunda se é algo complexo que você procura. Mas, se você quiser apenas entretenimento, uma novela com suspense, você também encontrará em Deimos e Phobos.

Logo, se depois de ler a HQ e esta matéria você achar que tudo que escrevi foi bobagem, e que essa história de manipulação, ódio e orgulho dos governantes não existe, nem em Deimos e Phobos e nem na vida real, tudo bem. Na vasta galáxia de Star Wars, com o Império governado pelo Palpatine, ainda tinha habitantes que achavam que estavam vivendo em um lugar perfeito.

Porque no final, infelizmente, parece que é sempre isso que importa: o benefício próprio, mesmo se isso custar a liberdade do coletivo.

Tico Pedrosa é roteirista, escritor e fã de quadrinho desde sempre. Você pode conferir as ideias dele no instagram e twitter.


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