A solidão é uma ilha


Em tempos de pandemia e distanciamento social muito se fala sobre a solidão. Solidão, aliás que não está presente apenas nas pessoas que estão respeitando o isolamento e estão afastados de seus famílias e amigos, mas há também a solidão que cresce muito no vazio que está cada vez mais presente no interior dos indivíduos, que vira apatia, egoísmo e uma falta de conexão total com a humanidade. Miguelanxo Prado, em Traço de Giz, fala sobre solidão de forma tocante, misturando uma brisa suave e com pequenas tempestades de granizos.

Acasos

Não conhecia Miguelanxo Prado. E por uma insistência de um amigo, decidi ler Traço de Giz, da Editora Pipoca & Nanquim, para ver o que esse autor espanhol poderia me trazer. Quando comecei a ler fui me envolvendo aos poucos na história, isso porque Prado traz um aspecto de maré calma em sua narrativa. A história é lenta e calma. Os desenhos são praticamente pinturas quadro a quadro. E os diálogos são firmes e consistentes. Tão técnicos e pensados para que cada cena tenha um significado enorme no todo da história.

Nada é colocado na história por acaso.

Traço de Giz conta a história de Raul, um rapaz que estava velejando e, após uma tempestade, encontra uma ilha isolada no meio do oceano. Nesta ilha há um farol quebrado, uma estalagem sem hóspedes, uma mulher e seu filho trabalhando lá, e um muro extenso com várias mensagens misteriosas escritas nele.

Raul fica um tempo na ilha e durante sua estadia neste lugar quase que irreal de existir, o barco de uma garota chamada Ana, atraca.

É a partir de então, com quatro pessoas dentro dessa ilha, que a solidão começa a se espalhar cada vez mais.

Faces da solidão

Prado mostra como a solidão se manifesta em diferentes formas em sua história. Raul, com uma autoestima quase que infantil, tenta conquistar a atenção de Ana, mas quando não consegue, distribui grosserias gratuitas para qualquer um. Ana, também infantil, está lá para encontrar um misterioso homem que deixou uma mensagem no muro do pontão. Sozinha, ela espera por esse homem e trata com igual rispidez as tentativas de aproximação de Raul. Sara, a dona da estalagem é uma figura apática, de ações e feições sofridas. Dimas, o filho de Sara, é um adolescente estranho que como hobby, mata as gaivotas com finas e pequenas estacas.

A solidão está em todo o local nestes personagens. Cada um de um jeito, cada um com uma característica. Mas todos solitários.

Quando fazemos o exercício de perceber as nuances da solidão em cada canto de nosso cotidiano, conseguimos perceber como o mundo moderno é solitário.

Prado traz um recorte alegórico em 1993 sobre o tema, mas me fala se hoje a solidão também não está presente em todos os lugares? Em uma casa ou apartamento daqueles que moram sozinhos, no sorriso das pessoas que buscam diversão como fuga, nos pensamentos egoístas e negacionistas de quem não toma os cuidados com a pandemia por puro personalismo. Aliás, não há exemplo de maior de solidão do que o personalismo, que prende o indivíduo em suas próprias ideias e ideais.

Uso a pandemia como um exemplo cotidiano, mas com vírus ou sem vírus, as pessoas já estavam solitárias há muito tempo.

O brasil é um buquê

O rapper Criolo em sua música Não existe amor em SP fala o seguinte: “Os bares estão cheios de almas tão vazias / A ganância vibra, a vaidade excita / Devolva minha vida e morra / Afogada em seu próprio mar de fel”. Usando esse trecho como paralelo à obra de Prado, percebemos como a ganância, o orgulho e o olhar unicamente para o próprio umbigo, faz com que as pessoas fiquem vazias. Sozinhas em um mar de gente. Mar que mesmo com mais pessoas, ou seja, mais cheio, com a maré mais alta, não vai te levar a uma margem segura. E sim, vai fazer você se afogar cada vez mais.

Traço de Giz vem esfregar em nossa cara uma simplicidade atemporal de que não importa quem está perto de você, a solidão é algo plantado pelo próprio solitário. Com as palavras, com as ações, com as ideias.

Ainda na música de Criolo, o rapper diz que “São Paulo é um buquê / Buquês são flores mortas / Num lindo arranjo”. Os personagens de Prado também são buquês. Cada um formado de flores de diferentes cores, tamanhos e aromas. Mas todos, de certa maneira, já estão mortos em sua própria solidão.

O mais vazio dos vazios

Acredito que a pior solidão é aquela que transforma o ser humano em alguém ruim. Que bota uma armadura no indivíduo e ele passa a agir de maneira destruidora, mesmo que, para ele, nada aconteça.

Esse exemplo vemos frequentemente, e cada vez mais e mais, no brasil. O “e daí” constante, e não apenas dos governantes, mas da população (ora, o que é um governante senão o reflexo da vontade de seu povo). É essa solidão que gera os racistas, os genocidas, os preconceituosos, os machistas, os LGBTfóbicos, os extremistas, os negacionistas. A solidão traz a necessidade de preenchimento, mas essas pessoas são tão rasas que só resta o vazio para preencher o que falta.

Prado também mostra essa solidão em sua HQ, quando, após uma nova tempestade, duas novas pessoas entram na história: dois homens. A presença deles modifica a dinâmica, principalmente pelo comportamento destrutivo desses dois homens que violam tudo de uma forma desumana.

Porém, a presença deles na história não é apenas para “colocar fogo” na trama. Eles estão lá como um ponto de virada. Porque depois deles, todos os outros quatro personagens mergulham de maneira mais profunda em seu vazio.

Cíclico

Traço de Giz é uma aula. Aqueles que procuram um bom quadrinho, encontram aqui uma aula de diálogos bons, narrativa consistente, um roteiro amarrado e muito bem escrito e uma arte belíssima e tão real, como um filme europeu em suas fotografias ousadas. Rapidamente, se tornou um dos meus quadrinhos preferidos.

Mas Prado também dá uma aula de vida. Seu maior ensinamento é deixar claro que a solidão é cíclica. Se não mudarmos nosso comportamento e nossa percepção perante o que queremos, levando em consideração o outro que está ao nosso lado, mais vamos cair no vazio. Muitas e muitas vezes, repetidamente, sendo eternamente solitários.

Tico Pedrosa é publicitário, roteirista, escritor, professor e criador de conteúdo. Fã de quadrinho desde sempre. Você pode conferir as ideias dele no instagram e twitter.


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